Movimento negro e luta de classes no Brasil

Um resumo histórico (publicado na revista Negras e Negros do PSOL) | Mário Makaíba (1)

INTRODUÇÃO
A trajetória do Movimento Negro no Brasil veio se forjando num processo de reelaboração estratégica de construção de um movimento de massa, em cada conjuntura histórica da luta de classes, desde a abolição (1888) até os nossos dias. Nesse processo foram criadas várias organizações com base na identidade racial, com alguns de seus setores fazendo alianças e assumindo compromissos com diversas forças políticas e ideológicas, da “direita” à esquerda marxista. Entre essas tantas organizações destacaremos aqui, por suas características de movimento de massa e perfis ideológicos opostos, A Frente Negra Brasileira e o Movimento Negro Unificado.

A FRENTE NEGRA: POR DEUS, PÁTRIA, RAÇA E FAMÍLIA
A década de 30 do século passado foi um período agitado na história da luta de classes no Brasil. Começou com uma revolução constitucionalista, viu surgirem movimentos de esquerda, como a intentona comunista, e de direita, como a ação integralista, e terminou com um golpe de estado em 1937 – o Estado Novo populista de Getúlio Vargas. Foi no meio dessa conjuntura de fogo cruzado que se deu a fundação da Frente Negra Brasileira, em 1931. Como toda frente política, a F.N.B abrigou diversas tendências, não sem conflitos – onde, inclusive, se encontravam monarquistas com simpatias pelo fascismo. Mas, todos fretenegrinos se enquadravam na ideologia conservadora nacionalista de “Deus, Pátria, Raça e Família”, subtítulo do jornal da Frente, “A Voz da Raça”. Apenas no termo “raça”, é que o lema da frente se diferenciava do movimento integralista. A Frente chegou a transformar-se em partido em 1936, com intenções de participar do processo eleitoral. Mas, suas pretensões foram abortadas com a instauração da ditadura varguista, em 37, que extinguiu todas as organizações políticas da época. No período de duração da ditadura estadonovista (1937 – 1945), foi impossível organizar qualquer movimento contestatório, fossem de classe ou de raça. Nessa fase, a luta anti-racista negra se limitou a afirmação racial no culto à Mãe-Preta em defesa da “segunda abolição”.

Do fim da ditadura varguista até o golpe militar de 1964, abriu-se um período de conjuntura democrática, que possibilitou o ressurgimento dos movimentos negros organizados (assim como a recomposição do movimento sindical e das organizações políticas de esquerda – como o PCB), mas sem o poder de aglutinação da Frente Negra Brasileira. Dessa época, um dos principais agrupamentos foi o Teatro Experimental do Negro, fundado no Rio de Janeiro, em 1944, e que tinha na sua direção o militante Abdias do Nascimento (1914-2011). O TEM foi responsável por divulgar no Brasil as propostas do movimento político dos negros franceses, que posteriormente serviu de base ideológica para a luta de libertação nacional dos países africanos. O grupo de Abdias foi praticamente extinto dois anos após o golpe militar de 1964, quando mais uma vez todas as organizações do movimento dos trabalhadores e popular foram suprimidas pela força da ditadura.

MNU: A UNIFICAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO E A SÍNTESE RAÇA E CLASSE
Foi no ano de 1978 do século passado – a partir do debate travado entre os movimentos negros sobre o que fazer, no dia 13 de Maio, data da abolição da escravatura – que aconteceu a unificação do movimento negro no Brasil. O processo de construção dessa unidade durante boa parte dos anos 70 sofreu forte influencia do movimento “Black Power”: o nacionalismo negro dos EUA (que defendia a idéia de uma “identidade coletiva negra” acima das divisões de classes). 1978 também foi o ano em que, tendo a frente à classe trabalhadora, cresceram no movimento sindical, estudantil e popular as lutas democráticas contra a ditadura – iniciada com o golpe militar de 1964 que foi planejado e apoiado pelo imperialismo estadunidense. Daí que, para a esquerda marxista brasileira daquela época, a unificação do movimento negro sob a influência do “Black Power”, significava a submissão da luta anti-racista dos negros brasileiros ao colonialismo do império ianque. O fato é que, se por um lado, na prática, isolado, o fenômeno da unificação do movimento negro – com a sua vanguarda sob a influência de um nacionalismo negro importado – ainda seguia a lógica de contestação pura e simples de tudo o que fosse “branco”, inclusive a teoria marxista revolucionária da luta de classes, vista como “eurocêntrica”, por outro lado, até aquele momento a síntese raça-e-classe não fazia parte da formação teórica clássica e classista da esquerda brasileira.

O nacionalismo negro importado dos EUA cumpriu o papel importante de resgatar a dignidade de raça aos negros brasileiros. Ao exacerbar a negritude, dando visibilidade ao indivíduo negro, não só junto aos brancos, mas também entre os próprios negros, tornou palpável para as lideranças negras reivindicações econômicas e de poder. Emergiu daí uma vanguarda negra de classe média que assumindo sua afrodescendência, confrontou-se com o orgulho que têm de sua origem étnica os indivíduos brancos da pequena e da grande burguesia brasileira. Dessa classe média negra emergente surgiram novas lideranças que juntos as antigas, foram depois – nos anos 80 – acolhidas por partidos criados dentro de uma conjuntura política da luta de classes de redemocratização da sociedade brasileira, com trânsito no movimento sindical e popular, como PT e PDT.

A entrada de militantes do movimento negro nos recém criados partidos políticos de perfis sindical e popular foi determinada pela nova realidade da luta de classes pós 1978, que se deu sob uma conjuntura de ascenso das lutas da classe trabalhadora brasileira que naquele período, do final dos anos 70 até meados dos anos 80, foi a vanguarda de toda luta dos movimentos sociais contra a ditadura e pela volta da democracia ao país. É que para a necessidade de sobrevivência de todo movimento social, o gheto é um suicídio político. Pelo seu instinto de luta contra a opressão que comprime e a exploração que esvazia, todo movimento social tende ao sentido de sua expansão. Do contrário, será asfixiado pela capitulação, assimilação e cooptação de sua militância. E para que esse destino trágico não se cumpra, é necessário encontrar aliados contra o inimigo comum. Esse foi o caminho daquela nova vanguarda de militantes negros que com muito esforço ingressaram na classe operária e no meio da intelectualidade “progressista” e de esquerda como Lélia Gonzáles, Hamilton Cardoso e o veterano Abdias do Nascimento, que ao lado de lideranças mestiças, indígenas e brancas combinaram, pela primeira vez no Brasil, na prática a luta anti-racista com a luta de todos os trabalhadores contra o capital naquele período.

Mas o “giro” dessa militância negra para escapar do isolamento, não foi por acaso. Do processo de unificação do movimento negro no Brasil surgiu o Movimento Negro Unificado (MNU), fundado naquele mesmo ano de 1978 por um grupo de militantes negros da organização marxista-trotskista, Convergência Socialista (Hamilton Cardoso, Flávio Carrança, Vanderlei José Maria, Milton Barbosa, Rafael Pinto, Jamu Minka e Neuza Pereira). Na concepção desses militantes, o capitalismo era o sistema que alimentava e se beneficiava do racismo. Assim, só com a ruptura revolucionária com esse sistema e a instauração do socialismo a partir de um governo de todos os trabalhadores seria possível a superação do racismo. A política que conjugava raça e classe na formação desses militantes negros cumpriu um papel decisivo na fundação do Movimento Negro Unificado. Dali por diante as posturas táticas e ideológicas adotadas pelo MNU passaram a influenciar a luta anti-racista e suplantar a postura conformista e assimilacionista predominantes na história do movimento negro em geral desde a abolição até a data de conclusão de sua unificação.

A criação do MNU tornou-se um marco na história do movimento negro no Brasil, porque tinha como estratégia, além de propor a unificação da luta de todos os grupos e organizações anti-racistas em um movimento nacional, objetivava também, combinar a luta desse movimento unificado com a de todos os oprimidos da sociedade. Em seu Programa de Ação defendia as seguintes reivindicações “mínimas”: desmistificação da democracia racial brasileira, organização política da população negra, transformação do Movimento Negro em um movimento de massas, formação de um amplo leque de alianças na luta contra o racismo e a exploração dos trabalhadores, organização dos trabalhadores negros e pobres para enfrentar a violência policial, organização nos sindicatos e partidos políticos, luta pela introdução da História da África e do Negro no currículo escolar e a busca de apoio internacional contra o racismo no Brasil. Uma Carta Aberta foi distribuída à população e lida em praça pública no Largo do Paisandu em São Paulo no dia 13 de maio de 1978, entre faixas e cartazes que questionavam a abolição da escravatura e denunciavam a brutalidade policial, chamando os negros a formarem “Centros de Luta” (no estilo dos Sovietes) nos bairros, nas vilas, nas prisões, nos terreiros de candomblé e umbanda, nos locais de trabalho e nas escolas com a finalidade de organizar a luta contra a opressão racial e a exploração do capital.

Dez anos depois da fundação do MNU, a sua síntese política de raça e classe para a unificação dos movimentos negros no Brasil influenciou também no espírito e na forma de organização da I Marcha Contra o Racismo no dia 11 de Maio de 1988 no Rio de Janeiro. Principalmente na formação dos “comitês” de mobilização e na articulação dos apoios do movimento comunitário, estudantil e sindical. Já a exposição de bandeiras e outros símbolos que significassem a presença de partidos dentro da marcha, foram “evitados” pelo comando do evento que preferiu dá aquela mobilização um caráter “não partidário”- mesmo que muitos de seus militantes fossem também filiados as organizações políticas. A Marcha Contra o Racismo que contou com mais de 20 mil participantes, teve o objetivo político de se contrapor aos festejos oficiais do centenário da abolição.

Com a orientação do I Comando Militar do Leste foi montado um forte aparato repressivo com militares das forças armadas e da força policial do Estado para impedir o deslocamento da Marcha contra a farsa da abolição, programada para seguir o percurso da Candelária à Central do Brasil, sob a alegação de que os manifestantes causariam danos à estátua de Caxias (que fica na Presidente Vargas, em frente à sede do I CML).

O governador do estado na época, Moreira Franco – PMDB – (atual ministro de Assuntos Estratégicos da “presidenta” Dilma), designou o próprio secretário de polícia civil do seu governo, Hélio Sabóya, para informar oficialmente ao comando da Marcha que a polícia não iria permitir de modo algum o deslocamento da mesma. Mas a repressão a Marcha não se limitou a impedir a passeata dos manifestantes. Horas antes do início da marcha, os militares cercaram e puseram abaixo o palanque montado em frente à Central, enquanto a polícia reprimia e prendia vários militantes que saíam dos trens com faixas e cartazes, chegando do subúrbio e da baixada fluminense para a concentração da Marcha no início da Presidente Vargas na Candelária, onde já havia um grande número de policiais. Diante dessa situação, mesmo com a disposição dos militantes para enfrentar o cerco repressivo, no intuito de evitar um confronto com a repressão que pusesse em perigo os participantes da Marcha, o comando da manifestação orientou os militantes a seguirem com a passeata somente “até onde o racismo deixar”. E a Marcha parou antes de completar o seu percurso, impedida por uma “muralha” de policiais. Mesmo assim, a maioria dos participantes da Marcha Contra o Racismo comemorou o sucesso daquela manifestação que teve uma cobertura da imprensa nacional e estrangeira.

O PROJETO LULISTA DE CONCILIAÇÃO DE CLASSES E A COOPTAÇÃO DE GRANDE PARTE DAS LIDERANÇAS DO MOVIMENTO NEGRO.
Os efeitos positivos dessa unificação dos movimentos negros ficaram evidentes, também, na Constituição de 1988 quando o racismo passou a ser enquadrado nos termos da lei como um crime inafiançável. Antes era apenas uma contravenção. Porem, como todo o movimento social do final dos anos 80 do século passado até hoje em 2011, a construção dessa unificação sofreu a erosão política, resultante do refluxo da luta da classe trabalhadora no Brasil e do pacto social promovido e posto em prática nos dois mandatos de Lula. Boa parte dos militantes negros filiados aos principais partidos que compõe a base do “lulismo” – PT, PC do B, PDT e PMDB – foi cooptada e aderiu ao projeto político ideológico de conciliação de classes que define essa frente partidária. Como conseqüência dessa adesão da maioria das lideranças negras ao projeto de conciliação de classes lulista, veio a degeneração da unidade do movimento negro e o retrocesso da consciência, da estratégia e táticas de lutas. Praticamente, a degeneração e o retrocesso decretaram o esfacelamento do processo de unificação do movimento.

A prova evidente da degeneração e do retrocesso é o Estatuto da Igualdade Racial em vigor desde o ano passado, depois de tramitar 10 anos pelo Congresso. Assim que o Estatuto foi aprovado pelo Senado, em 16 de junho de 2010, setores do movimento negro protestaram e se posicionaram contra a sanção pelo presidente Lula. O protesto desses setores era contra a retirada do Estatuto das reivindicações históricas do movimento, que foram debatidas, acumuladas e sistematizadas durante todo o processo de unificação como: demarcação dos territórios Quilombolas, as disposições relacionadas a medidas de fato no campo da saúde, educação e políticas de cotas. Já as lideranças negras do campo lulista saíram em defesa do Estatuto aprovado sob a alegação de que ele significava o avanço possível na promoção da igualdade racial no Brasil. Porem, o “possível” foi mais uma, de tantas outras manobras políticas utilizadas pelos representantes da elite branca capitalista brasileira no Congresso Nacional e em todo o aparelho do Estado desde a abolição, para impedir, ou no mínimo, dificultar a criação de uma legislação específica e políticas de reparação compensatória que removam as barreiras sociais reforçadas pela discriminação racial nesse país.

Não foi por acaso, que todos os cortes no texto original do Estatuto foram feitos pelo senador direitista Demóstenes Torres do DEM com o aval do senador “negro” do PT Paulo Paim, apresentador no Congresso do Estatuto original. Todo o esvaziamento no conteúdo original resultou em um Estatuto da Igualdade Racial que só serve para dissimular os verdadeiros interesses de classe da elite branca capitalista brasileira e de seus sócios internacionais. Uma elite de novos senhores de escravos que sob o manto de uma hipócrita “democracia racial” corroborada agora pelo Estatuto em vigor, arranjou um pacto político racial com lideranças negras governistas, como o fez com lideranças de outros setores do movimento social e dos trabalhadores através do governo Lula, para garantir a manutenção da política de conciliação de classes, promovida pelo lulismo com continuidade no governo de Dilma Rouseff.

CONCLUSÃO
A derrota do Estatuto da Igualdade Racial repõe na ordem do dia a necessidade de se recompor a unidade do Movimento Negro no Brasil, retomando o ponto de partida da estratégia da unidade necessária de todos os oprimidos e explorados pelo capital: a unidade inter-racial da classe trabalhadora brasileira. Do ponto de vista da esquerda marxista revolucionária, a luta contra o racismo não pode ser menosprezada e encarada apenas como uma obscenidade moral, como é de fato. Mas, uma organização política que pretenda se inserir na classe trabalhadora brasileira e não enfrenta de fato o racismo que existe nesse país, não vai conseguir dirigir a totalidade da classe e derrotar o capital por meio de uma revolução, porque no Brasil está a segunda maior população de negros do mundo, ficando atrás apenas da África. Êis, porque, tornou-se necessário entendermos, que a luta contra a opressão racial é parte indispensável do projeto socialista revolucionário.

(1) Militante da CST, filiado ao PSOL-RJ e colaborador do Círculo Palmarino
Bibliografia:
BARBOSA, Márcio – Frente Negra Brasileira (depoimentos) / Ed: Quilombhoje, 1998
CALLINICOS, Alex – Racismo e Capitalismo / Cadernos Socialistas. Ed: Revolutas, 2004 – SP
CARDOSO, Hamilton – História Recente (dez anos de movimento negro) / TEORIA E DEBATE, Ed: S. F. P – PT, 1988. Revista Teoria e Debate – SP.