Declaração da República Catalã pelo Parlamento e o boicote às eleições.

A declaração da República Catalã pelo Parlamento, no dia 27 de outubro, é o resultado de seis anos de mobilização permanente de um povo que se impôs diante das investidas repressivas do regime espanhol e da atitude vacilante da direção burguesa catalã, que buscava ganhar tempo enquanto tentava se reacomodar de forma mais vantajosa dentro do estado. Assim, passamos por uma trajetória que incluiu desde o 9N, eleições “plebiscitárias”, negativa a proclamar a DUI (Declaração unilateral de independência) com a maioria independentista de 27-S, um longo período de tempo para a estruturação do estado, o referendo de 1 de outubro – com extensas filas de votantes diante da incerteza de sua realização nos locais de voto fechados pela polícia -, a declaração de independência confusamente redigida que só ocorreu no dia 10 de outubro (e não no dia 4) sem o voto do Parlamento e logo foi suspensa, até o anúncio de convocatória de eleições de 26/10 com mediação da burguesia basca, que não se concretizou.

Mas a mobilização continuou: movimento massivo e espontâneo contra a intervenção policial de 20 e 21 de setembro; greve estudantil; ocupação das escolas ante a repressão e em defesa do plebiscito, que reuniu 2,3 milhões de votos; greve geral de 3/10 por cima das direções conciliadoras da CCOO e UGT;  e, finalmente, as greves estudantis de 26 e 27/10 para exigir a Puigdemont a proclamação da República catalã, ante a chantagem da classe patronal catalã, manifestada na demissão de Santi Vila, que é apenas mais um da longa lista de ex-conselheiros municipais do PDeCat, e as declarações de Artur Mas.

Sob a pressão dos estudantes nas ruas e cartazes que acusavam Puigdemont de traidor, veio a confusa proclamação da República, como um gesto simbólico e sem nenhum plano para a sua efetivação, com um povo iludido e um governo que, em vez de dar as caras, preferia permanecer atrás das paredes da sede governamental. E, como já era previsto, também se deu a aplicação do artigo 155 e a destituição do governo catalão.

Os trabalhadores e trabalhadoras do setor público (TV3, Rádio Catalunha, Educação e administração da Generalitat) deixaram claro que só reconhecem a legitimidade do governo eleito e se preparam para resistir. Mas, sem nenhuma mobilização de apoio à República ou contra o artigo 155, acabou o regime ficando com a iniciativa política e as ruas entregues aos monarquistas, para aplaudirem o 155 e a repressão, e aos fascistas, que ficaram à vontade para agredir impunemente. Na segunda-feira é aceita a dissolução do Parlamento e os membros do governo catalão abandonam seus postos de trabalho, enquanto os Mossos d’Esquadra (polícia catalã) passam o controle do Ministério do Interior. A única surpresa foi a transferência a Bruxelas de Puigdemont e parte do governo catalão.

Para esta desmobilização contribuíram também a esquerda sindical e a CUP, a reboque da direção da Omnium, da ANC e dos partidos do governo, que tampouco convocaram nenhuma mobilização nesses dias nem deram a menor demonstração de soberania, em flagrante contraste com a disposição manifestada a 1 de outubro por gente de todas as idades. 

A traição de JxS

Onde estavam as “estruturas de estado”, no momento em que se proclama a República e se pretende justificar cinco anos de espera e derrogações? Como é possível que as estruturas realmente existentes (parlamento e governo) sejam abandonadas logo no primeiro dia, sem que se oponha a mínima resistência nem se prepare a sua defesa? Como é possível que na JxS e no Governo se aceitem desde o início eleições impostas com data para 21/12, achando-se na prisão uma parte dos seus dirigentes, e que, ainda por cima, o presidente as qualifique como um “desafio democrático”?! Não existe pior derrota que a derrota sem luta, e o entreguismo do governo catalão é uma traição à decisão do povo. Esta situação confundiu as pessoas e levou a uma grande desmoralização. Não há atenuante que explique isto, e sim o fato de que o governo da JxS não queria avançar até este ponto. Por isto não se preparou para enfrentar a resposta do Estado e a cada passo dado na direção da República se produziram inúmeras demissões de conselheiros. O discurso segundo o qual era preciso parar para evitar a repressão revelou-se totalmente falacioso, porque quanto mais retrocede a mobilização mais somos golpeados. A hesitação contribui para debilitar um movimento desorientado, ficando o Estado espanhol  com mais força para esmagar o soberanismo, endurecer as acusações da Procuradoria e atacar todo o governo catalão e seu Parlamento a fim de decapitar a direção política do governo, como já o fizera com a das mobilizações. 

Quando dizemos que a Monarquia é a continuidade do franquismo não se trata apenas de uma afirmação radical. O conteúdo e as consequências desta afirmação implicam não se deter diante da JxS, por muito que esta se ponha a serviço de esfriar o movimento e buscar uma forma de se encaixar no regime, sabendo-se que este não hesitará em esmagá-la também, como já fez ao deter o vice-presidente e conselheiros municipais. E quanto ao reconhecimento internacional, é impossível contar com ele se aqui dentro não demonstramos a decisão clara e firme de defender a República catalã.

Força e debilidades do regime

Mas o regime também tem consciência das suas debilidades. O plano inicial era aplicar o artigo 155 a fundo, “espanholizar” as crianças catalãs desde a idade escolar, controlar os meios de comunicação etc. Estimava-se que esta politica poderia durar entre seis meses e um ano, até ser possível a realização de eleições depois de um retorno à ordem constitucional. Mas a reação popular encurtou as possibilidades de aplicação do 155 e impôs a realização de eleições num prazo rápido, por temor à resistência popular mas também ao risco de fissuras no bloco formado pela monarquia, o PSOE e Ciudadanos, na medida em que poderiam entrar em cena mobilizações de solidariedade com a Catalunha e a causa da república em outras partes do Estado espanhol, como as massivas manifestações de Bilbao e Madri na primeira semana de outubro, atacadas pelos fascistas.

Bruxelas e Merkel, que não querem de nenhum modo que a autodeterminação do povo catalão se torne um exemplo contagioso, também exigem a Rajoy um termo ao problema antes que acabe disparando o índice de risco da Espanha no mercado europeu.

Este 155 encurtado não exclui uma nova onda feroz de repressão, porque as medidas iniciadas abriram as portas para os setores mais ultradireitistas do aparelho estatal, desde o Judiciário, que joga lenha na fogueira com as detenções, até os bandos fascistas alentados pelo unionismo espanhol no contexto da fratura social que lhe era imprescindível para construir para si mesmo uma mínima base social, o que se tornou possível a partir do discurso do rei. O regime atua com a brutalidade de um animal ferido. 

Agora, voltaremos a sair às ruas pela liberdade dos presos, contra o 155 e a repressão, em defesa dos eleitos e pela República catalã. Mas não se pode continuar a confiar nas manobras astuciosas, nas táticas do segredo e das dilações, nos governos da “Europa democrática”, na ideia de que “se agimos civilizadamente seremos ouvidos”, no formalismo que trava a iniciativa popular. É preciso voltar à luta e ajudar a criar estruturas de decisão desde abaixo, recuperar a atividade da Plataforma da esquerda sindical que convocou a greve de 3 de outubro, potencializar os Comitês de Defesa da República, consolidar o movimento estudantil com base em assembleias e coordenadoras e dotar de conteúdos a nossa luta, porque a República será dos trabalhadores ou não será. A República terá que servir para a luta contra o desemprego e a precariedade, para a defesa dos salários e do regime de pensões, da escola e da saúde pública, exigências que não fazem parte do discurso oficial e que estão longe de se concretizarem para boa parte da classe operária catalã. E sem a entrada em massa da classe operária, não será possível deter a investida do Estado. 

E as eleições?

É evidente que o boicote é a única medida cabível diante de eleições que são parte do 155 para voltar ao estado de coisas representado pelo estatuto da autonomia. Não há outra interpretação possível. É preciso convocar todas as forças contrárias ao 155 a boicotar essas eleições e a não se apresentarem, inclusive porque a prisão dos membros do governo catalão decretada pelo Estado impossibilita que sejam minimamente democráticas. Mas neste ponto não há lugar para especulações. O boicote será possível pela decisão das forças contrárias ao 155 (ERC, PDCAT, CUP e os Comuns) ou com uma poderosa mobilização, embora essas forças tenham dito que se apresentam. Mas se nenhuma dessas possibilidades se concretiza, a responsabilidade da esquerda e particularmente da CUP-CC é lutar no marco que nos for imposto. Seria um grave erro ficar à margem. Há que dizer a verdade: não se trata de nenhum “desafio democrático” e não é verdade que se ganharmos estará consolidada a república, entre outras mentiras que se propalam.

Se não tivermos outra opção senão ir às eleições, iremos para reagrupar as forças de uma esquerda consequente com uma proposta clara e nitidamente diferenciada do PDcat e do ERC, aberta a um acordo mais amplo, sem abandonar nenhuma das duas rupturas que definimos em CUP-CC: ruptura com o estado e pela república catalã, ruptura com o capitalismo e por uma saída da crise em favor dos trabalhadores.

Luta Internacionalista   –    5/11/2017

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