Entrevista com Plínio de Arruda Sampaio Júnior

Conheça na integra a entrevista com Plínio de Arruda Sampaio Júnior concedida ao Jornal Combate Socialista da CST, N°99 de junho de 2019

1) CS: Diferentemente do que diziam o governo e “os mercados”, os dados do IBGE mostram que vivemos uma estagnação econômica. Quais os efeitos dessa crise para o povo trabalhador?

Plínio: A burguesia mente sistematicamente sobre a real situação da economia. O relatório Focus do Banco Central, que divulga as expectativas do mercado sobre o desempenho da economia brasileira, é o exemplo maior da lógica “fake” que dita o debate público. Desde 2014, quando a crise se instala definitivamente no Brasil, o relatório não acerta uma previsão do PIB. Os erros são grosseiros, sempre anunciando uma recuperação do crescimento e do emprego que nunca se cumpre.

A verdade é que, após uma retração de 8% do PIB em 2015 e 2016, a economia brasileira encontra-se estagnada. Em 2018, a produção brasileira voltou ao nível de 2010. É a contração mais severa da história moderna do Brasil. No ritmo da suposta “recuperação” dos últimos dois anos, o Brasil precisaria de 38 anos para alcançar o nível máximo de renda per capita alcançado em 2013.

O trabalhador sente os efeitos da crise econômica  basicamente de quatro formas:

Primeiro, a crise aumenta o desemprego. De acordo com o IBGE, 1 a cada 4 brasileiros em idade de trabalho está desempregado, desalentado (ou seja, desistiu de procurar emprego) ou trabalha menos de 40 horas por semana. É um contingente populacional de mais de 28 milhões, número equivalente a toda a força de trabalho da Argentina, Chile e Uruguai;

Segundo, a crise agrava o empobrecimento absoluto e relativo da população. A retração da economia fez a renda per capita do Brasil retroceder para o nível de 2008. Os indicadores sinalizam para uma expressiva deterioração da distribuição de renda. Os salários perdem participação na renda nacional e, dentro da achatada massa salarial, uma parcela cada vez maior fica com os trabalhadores de elite que ganham altos salários;

Terceiro, a estagnação da economia gera uma crise fiscal de grandes dimensões. A contração de 10% na receita tributária do governo federal entre 2014 e 2017 é um dos fatores responsáveis pelo agravamento acelerado do desequilíbrio das contas públicas. O problema é aguçado pelo aumento das despesas do Estado para socorrer empresas em dificuldades e alimentar a ciranda financeira da dívida pública;

Por fim, a crise fomenta um verdadeiro terrorismo econômico contra a classe trabalhadora. O desemprego, o arrocho salarial, o espectro do desemprego e o desmonte das políticas públicas deixam o trabalhador extraordinariamente fragilizado diante do capital. Se não houvesse um quadro de estagnação estrutural, a burguesia não teria a ousadia de avançar sobre a CLT, congelar por vinte anos as políticas públicas e atentar sistematicamente contra a aposentadoria dos trabalhadores.

2)  CS: Desde os governos anteriores se aplica um forte ajuste sem resultar no tal “crescimento” que eles propagam. O ajuste fiscal pode garantir empregos e direitos sociais?

Plínio: O ajuste fiscal é um tiro no pé. O que o Estado economiza cortando gastos é mais do que contrabalançado pelo impacto negativo da recessão sobre a receita fiscal. É o que se viu na Grécia. É o que vimos no famigerado ajuste iniciado por Dilma Rousseff. Entre 2015 e 2016, o corte nos gastos do Governo Federal foram neutralizados pela contração da arrecadação de imposto. E, assim, o Tesouro Nacional, que até então produzia elevados superávits primários, passou a registrar saldos negativos sistemáticos.

O ajuste fiscal não é para gerar empregos e direitos. Os verdadeiros objetivos do ajuste (claro que não declarados) são: disciplinar a classe trabalhadora pelo terrorismo econômico do desemprego; mercantilizar os serviços públicos; e deslocar recursos públicos para alimentar a ciranda financeira com títulos públicos.

CS: 3) Qual a relação da divida pública com o ajuste estrutural?

Plínio: A economia brasileira está submetida às exigências do grande capital, internacional e nacional. Trata-se de: a) aumentar a taxa de lucro das empresas pelo rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores; b) especializar a economia brasileira numa posição mais degradada na divisão internacional do trabalho pelo incentivo à produção de produtos de baixo conteúdo tecnológico – agronegócio e extrativismo mineral -; c) abrir novas oportunidades de negócios para o capital pela privatização das empresas e dos serviços públicos; e d) garantir a sustentabilidade da especulação financeira com títulos públicos.

O chamado ajuste fiscal é parte dessa política. Ao contrário do que se escuta diariamente nos meios de comunicação, a finalidade não é enfrentar o sobreendividamento provocado pela expansão da dívida pública, mas garantir a reprodução indefinida do sobreendividamento do Estado e, assim, sustentar a farra financeira dos capitais. Em outras palavras, não se trata de promover um saneamento financeiro para resgatar a capacidade de gasto público, mas subordinar o orçamento público à lógica dos credores do Estado.

O ajuste ortodoxo não interrompe a bola de neve responsável pela expansão descontrolada da dívida pública – os gastos financeiros derivados das despesas geradas pela própria dívida. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, entre 2007 e 2013, as despesas com pagamentos dos juros nominais da dívida pública representaram, em termos acumulados, 45,7% do PIB. Nesse mesmo período, as despesas primárias (que expressam os gastos públicos reais) ficaram bem aquém das receitas fiscais, gerando um superávit fiscal acumulado de 18% do PIB. Isso significa que os recursos fiscais que deveriam estar sendo utilizados para melhorar os serviços públicos foram desviados para neutralizar (em quase 40%) o impacto expansionista das despesas financeiras sobre a Dívida Pública. Mesmo entre 2014 e 2017, quando os superávits primários somem, o protagonismo pela escalada da relação Dívida Pública Bruta/PIB não pode ser atribuído à gastança do Estado com políticas públicas, pois os gastos com juros foram quatro vezes superiores aos déficits primários do setor público.

Apesar disso tudo, os condicionantes financeiros da dívida pública são ocultados da opinião pública. As estatísticas do Tesouro Nacional são ideologicamente construídas para proteger os interesses dos grandes detentores de riqueza financeira e jogar o ônus do ajuste fiscal nas costas dos trabalhadores. Assim, a burguesia esconde a verdadeira intenção do regime de austeridade, cuja essência consiste em subordinar os gastos públicos às despesas financeiras com a dívida pública. Na cartilha do ajuste ortodoxo, primeiro, os governos devem cumprir suas obrigações com os credores da dívida pública – os grandes bancos e os ricaços – e, depois, com o que sobrar, cuidar dos serviços públicos. Se não sobrar, cortam-se os serviços públicos. É por essa razão que as políticas públicas vivem em estado de permanente penúria. O absurdo da situação fica evidente no contraste existente entre a Carga Tributária Líquida (os recursos fiscais efetivamente disponíveis para financiar as políticas públicas) e as despesas com pagamentos de juros. Em 2015, por exemplo, essas duas magnitudes foram praticamente iguais – 8,4 e 7,7% do PIB, respectivamente, ou seja, nesse ano, os recursos fiscais para fazer política pública (saúde, educação, habitação, segurança pública, etc.) foram quase que equivalentes às  despesas financeiras do Estado com a dívida pública.

CS: 4) A politica econômica do governo Bolsonaro, baseada em  reformas estruturais, como a previdenciária e cortes no orçamento da educação, pode tirar o país da crise?

Plínio: O debate econômico, como de resto todo o debate público brasileiro, é manipulado descaradamente pelos grupos econômicos que controlam os grandes meios de comunicação. Não existe nenhuma base teórica ou empírica para imaginar que o suposto “choque de confiança” provocado pelas reformas liberais possa conduzir à recuperação do crescimento e do emprego. Antes o contrário. A experiência histórica e a boa teoria econômica apontam exatamente para o oposto. Ao contrair o mercado interno, a política de ajuste fiscal ortodoxo aprofunda a depressão da economia.

Na verdade, o desmonte das políticas públicas obedece a dois objetivos básicos: 1) criar negócios para o grande capital pela transformação de direitos sociais em mercadorias; e 2) transferir recursos públicos para cobrir os encargos da dívida pública. Trata-se de uma política antisocial que só interessa ao grande capital e estimula o rentismo.

Não há a mínima intenção de melhorar a vida das pessoas. A Reforma da Previdência não é uma reforma. A substituição do regime de partilha, baseado na noção de que a aposentadoria é um direito financiado pela solidariedade intergeracional, pelo regime de capitalização, segundo o qual a aposentadoria do trabalhador depende de sua própria capacidade de poupança e de sua perícia para encontrar boas aplicações,  deixa o idoso ao deus dará. Os ataques às universidades são motivados pela noção delirante de que é preciso liquidar um suposto “marxismo cultural” que estaria intoxicando a juventude brasileira. Bolsonaro é avesso a qualquer forma de vida inteligente.

CS: 5) Existe alguma saída para a crise sem prejudicar a classe trabalhadora e o futuro da juventude?

Plínio: O projeto que orienta a política econômica, caso bem sucedido, transformará a economia brasileira numa megafeitoria moderna. Numa economia neocolonial, o trabalho é destituído de direitos, não tem acesso a políticas públicas e muito menos direito à aposentadoria. Sem uma mudança radical nas forças políticas que sustentam o Estado brasileiro e nos critérios de prioridade que orientam a política econômica, é impossível imaginar uma saída para a crise política que não seja antisocial, antinacional e antidemocrática.

A abertura de novos horizontes pressupõe a construção de um projeto econômico alternativo. O fundamental é colocar a economia à serviço dos interesses fundamentais do conjunto dos brasileiros. O primeiro passo é romper o bloqueio mental que naturaliza o neoliberalismo. A tese de que não existe outra alternativa condena o povo à barbárie. O segundo passo é quebrar a teia institucional que sustenta o Plano Real – uma verdadeira arapuca que deixa a sociedade brasileira a reboque dos interesses do grande capital internacional e nacional – a começar pela revogação imediata da reforma trabalhista, da Lei de Responsabilidade Fiscal (que criminaliza qualquer política econômica anticíclica) e do congelamento dos gastos públicos por vinte anos.

Uma política econômica que priorize o ataque à pobreza e à desigualdade social e que esteja comprometida com a defesa da soberania nacional, a começar por um programa emergencial de combate ao desemprego, requer a reversão do processo de liberalização comercial e financeira, a imediata suspensão do pagamento da dívida pública, a centralização do câmbio, a democratização do Banco Central, a nacionalização efetiva da Petrobrás, a estatização do sistema financeiro, o planejamento público dos investimentos, a expropriação da Vale do Rio Doce e de todas as empresas envolvidas em crimes ambientais e delitos de corrupção e uma serie de reformas que coloquem as forças produtivas a serviço dos trabalhadores.

Evidentemente, uma mudança de tamanha envergadura – a única capaz de preservar os interesses populares e nacionais – supõe uma intervenção popular que coloque na ordem do dia uma refundação, de baixo para cima, do Estado brasileiro. É o desafio que polarizará a luta de classes no próximo período.

Plínio de Arruda Sampaio Júnior. Professor de Economia da UNICAMP

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