Pessoas em situação de rua: Recolhimento compulsório não é a solução

Ivana Fortunato – Psicóloga da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos de Niterói

 

Na segunda-feira, 5 de julho, foi publicado, no Rio de Janeiro, o decreto do prefeito Marcelo Crivella acerca da nova política de internação para a população em situação de rua que seja usuária de álcool e outras drogas ou que tenha transtornos psiquiátricos. O decreto vem como uma resposta ao recente ataque de uma pessoa em situação de rua em surto que deixou duas pessoas mortas e não é uma novidade, mas regulamenta aquilo que também foi decretado por Bolsonaro com a nova Política Sobre Drogas, através do Lei 13840, em junho e também foi defendida pelo governador Witzel.

O texto do novo decreto prevê um cadastro para a população em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro para que sejam traçadas políticas para esta população, a cargo da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, em abordagem junto à Guarda Municipal. Os usuários serão conduzidos até uma central de cadastramento, mesmo que coercitivamente. Além disso, também define os tipos e critérios para a internação da pessoa em situação de rua ou de usuários de drogas.

A internação poderá ser voluntária, quando há consentimento do usuário, ou involuntária, quando não há consentimento do usuário, mas há pedido de um familiar, responsável legal ou profissional da saúde, assistência social ou órgãos integrantes do SISNAD. Para a internação involuntária, a indicação deverá ser feita por um médico e deverá ocorrer pelo tempo de desintoxicação, sendo este de, no máximo, 90 dias, e ambas deverão acontecer em unidades de saúde ou hospitais gerais.

O decreto de Crivella cita a Carta Cidadã, afirmando que é tarefa também do município combater as causas da pobreza e os fatores da marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos. A pergunta então é: o que, neste decreto, cumpre este papel?

Não há até hoje dados que traduzam a realidade da população em situação de rua no Brasil ou no Rio de Janeiro. Em 2007, o Ministério do Desenvolvimento Social realizou uma pesquisa parcial em que apontava a existência de cerca de 50 mil pessoas em situação de rua, ou seja, pessoas que, embora de características bastante distintas, possuem em comum a pobreza extrema, vínculos familiares fragilizados ou rompidos e a inexistência de moradia regular e, assim, utilizam as ruas e espaços públicos para vivência e sustento.

Esta pesquisa de 2007 já apontava que mais de 80% da população era formada por homens e mais de 67% era preta ou parda. Ao contrário do que se pensa, a maioria não sobrevive das doações de dinheiro, mas exerce atividades informais, principalmente com coleta de materiais recicláveis, serviços gerais e limpeza. Os motivos que levam as pessoas às ruas são os mais diversos, mas alguns fatores são relevantes para serem considerados ao se pensar como garantir os direitos desta população.

O aprofundamento da crise econômica e social que vivemos tem produzido efeitos drásticos, especialmente, sobre a população mais pobre. O ajuste fiscal que garante o lucro da dos mais ricos, tira direitos dos trabalhadores e precariza ainda mais nossas vidas. O índice de desemprego chega a 12% da população, ou seja, hoje são mais de 13 milhões de desempregados, fato que é positivo para o crescimento econômico, segundo declaração recente do presidente do Itaú, Candido Bracher.

Segundos dados do Cadastro ùnico, obtidos através da Lei de Acesso à Informação, cerca de 13,2 milhões de pessoas hoje vivem em situação de miséria, tendo renda mensal o Bolsa Família, ou seja, um valor inferior a R$90. No Rio de Janeiro, do ano passado para cá, mais de 80 mil pessoas passaram à situação de extrema pobreza.

As recentes reformas e corte de verbas de áreas essenciais também contribuem para a piora das condições de vida da população mais pobre, sobretudo negra e de áreas periféricas. A Reforma Trabalhista e a flexibilização dos direitos trabalhistas, assim como a Lei das Terceirizações provocou impactos sem tamanho nos vínculos e condições de trabalho. A Reforma da Previdência, aprovada em segundo turno pela Câmara, avança na retirada de uma série de direitos. Além de aumentar a idade e o tempo de contribuição para aposentadoria, ataca outros benefícios previdenciários, como pensões e auxílios.

Além disso, a EC 95, aprovada em 2016, congelou por 20 anos os investimentos em serviços essenciais. Os reflexos desse congelamento vemos no avanço do sucateamento da educação, da saúde e assistência social, por exemplo. O Rio de Janeiro, enfrenta uma grave crise na saúde, na qual faltam profissionais, medicamentos e outros insumos e as filas de espera para tratamentos e cirurgias são imensas. Toda essa precarização já evidencia que, hoje, o sistema de saúde não tem condições de garantir em boas condições a internação de usuários de álcool e outras drogas, como determina o decreto. Além disso, não existem abrigos ou centros de acolhimento com vagas suficientes para a população em situação de rua. Segundo dados da Defensoria Pública, os abrigos da cidade do Rio de Janeiro só tem vagas para cerca de 15% da população.

Outro fator importante é pensarmos como a militarização das favelas e bairros periféricos e a falida guerra às drogas, principalmente no Rio de Janeiro, produz um agravamento da violência urbana, aumentando o risco a que milhares de famílias que vivem nessas regiões e que não podem ter moradia em outros locais por questão de renda estão submetidas. O déficit habitacional cresceu em 20 dos 27 estados, sendo São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e Maranhão os estados que apresentam maiores índices de habitação precária, gastos excessivos com aluguel e grande concentração de moradores na mesma residência, segundo dados da Fundação João Pinheiro (2015).

Somado a isso, a compreensão das políticas públicas acerca do uso de álcool e outras drogas têm avançado para um viés de reforço dos estigmas e preconceitos. O uso de drogas é visto cada vez mais caso de polícia e não de saúde pública, a exemplo da nova Política sobre Drogas que põe fim à estratégia de redução de danos, reforça a criminalização e investe nas comunidades terapêuticas, controladas por grandes lideranças políticas e religiosas e conhecidas por práticas que ferem os direitos humanos. Em contrapartida, a política de saúde mental é desmontada e segue recebendo cada vez menos verbas, sendo comum os dispositivos de acompanhamento, como CAPS e Centros de Convivência, não terem materiais e recursos humanos suficientes para realizarem seu trabalho.

Esse conjunto de fatores expressa uma realidade que empurra milhares de pessoas para as ruas, seja por desemprego, retirada de direitos, perda de moradia, violência urbana ou uso de álcool e outras drogas. E as respostas dos governos, que seguem aplicando o ajuste e retirando direitos, reforçam essa realidade, ao mesmo tempo que aplicam medidas higienistas de limpeza social, a exemplo da política de internação involuntária. O objetivo é “limpar” a cidade daquilo que não quer se ver, quando para resolver a questão do crescimento da população em situação de rua são essenciais políticas que intervenham nos fatores que levam às pessoas a esta situação, combatendo a pobreza, diminuindo a desigualdade social e garantindo direitos.

 

– Por mais políticas de geração de emprego e renda

– Por políticas de combate a fome e a miséria

– Por mais verbas para educação, saúde e assistência social

– Pelo fim da guerra às drogas e da militarização das favelas

– Pela legalização das drogas

– Contra as comunidades terapêuticas

– Por mais unidades de acolhimento e pela construção de moradias populares

– Contra a Reforma da Previdência e pela revogação da Reforma Trabalhista

– Pelo fortalecimento do Movimento Nacional da População em Situação de Rua e dos Fóruns de Assistência Social, para organização e mobilização em torno das suas pautas!

 

 

 

 

(O artigo é uma versão ampliada do texto publicado na edição n° 101 do Jornal Combate Socialista)

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