Como foram as estatizações na Venezuela?

Por Claudio Funes, do jornal El Socialista. Traduzido por: Lucas Schlabendorff

Na Argentina, o anúncio de estatização da empresa Vicentin, anunciada pelo governo de Alberto Fernández, tem gerado muitos debates na sociedade e rendendo comparações com a Venezuela. No Brasil, uma parte da esquerda vê com empolgação essa notícia. Mas que tipo de estatização é essa defendida pelo kirchnerismo? E como foram as estatizações realizadas pelo chavismo na Venezuela? No artigo a seguir, escrito por Claudio Funes, do Izquierda Socialista (seção da UIT-QI na Argentina), apresentamos a visão dos socialistas revolucionários sobre esse debate.

 

A intervenção estatal na gigante agroexportadora Vicentin, assim como o possível envio ao Congresso de um projeto para sua expropriação por parte do presidente argentino Alberto Fernández, despertou pânico nas grandes patronais, beirando a histeria.

Através da imprensa escrita, rádio e televisão estão sendo feitas previsões catastróficas, debates e comparações com a Venezuela de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro.

Um dos que de forma mais emblemática expôs essa preocupação foi Luis Miguel Etchevehere, ex-presidente da Sociedade Rural e ex-ministro da Agroindústria de Macri. Agourou que o país será “como a Venezuela, que começou com um slogan, como era a frase tragicômica de Chávez com o ‘exproprie-se’”. Esses setores patronais querem usar o evidente fracasso do chavismo para questionar as estatizações.

O que aconteceu na Venezuela?

O fracasso do chavismo não tem nada a ver com as estatizações. Pelo contrário. O chavismo chegou ao poder em 1998, prometendo justiça social, democracia participativa e anunciando que ia reverter a entrega da indústria petroleira aos capitais transnacionais.

Passados mais de vinte anos, o tempo sobra para fazer um balanço. O chavismo realizou uma intensa campanha dizendo que sob sua gestão a indústria petroleira foi renacionalizada. Será que foi mesmo? A realidade é a oposta, o chavismo tem a responsabilidade de ter aumentado a inserção das transnacionais petroleiras.

Em 2006, com o nome de “Plena Soberania Petroleira”, se anunciou o plano mediante o qual se poderia associar capitais privados à PDVSA. Surgiu assim o formato das empresas mistas. As primeiras em firmar foram a Chevron, Repsol, Shell, Total, Petrobras e Exxon Mobil, entre outras. As empresas mistas resultaram em organizações totalmente autônomas que declaram os lucros a seus acionistas. Ao mesmo tempo, Chávez rechaçou qualquer tipo de gestão ou cogestão operária, dando como desculpa que o petróleo é uma indústria estratégica. Não poderia ser de outra maneira. Já que a outra cara do acordo com as saqueadoras foi o compromisso de Chávez para liquidar os acordos coletivos de trabalho e as conquistas dos trabalhadores petroleiros para garantir mais lucros para as multinacionais.

A realidade foi então que, para além de certos atritos, Chávez nunca rompeu com o imperialismo. Manteve a empresa Citgo Petroleum Corpotarion, subsidiária da PDVSA, com 13.500 postos de serviço nos Estados Unidos e lhe continuou enviando milhares e milhares de barris ao “império”.

O que fracassou e levou ao colapso a própria indústria petroleira venezuelana foi esse esquema de empresas mistas. As importações de derivados do petróleo como a nafta superam as exportações, apesar da Venezuela ter um dos maiores complexos de refino do mundo. Essa é a razão para que cheguem na Venezuela navios do Irã com combustível. O saque levou a isso.

Por estatizações de 100%

O que Chávez nunca quis fazer foi expulsar as multinacionais petroleiras e que o Estado tomasse o controle da maior fonte de riqueza da Venezuela, o petróleo. Na prática, o chavismo defendia a empresa mista com uma maioria estatal de 51% e o resto nas mãos do capital transnacional associado. O povo venezuelano e milhares de lutadores anti-imperialistas do mundo acreditavam que Chávez havia efetivamente nacionalizado o petróleo. Por isso foram justamente nossos companheiros do Partido Socialismo e Liberdade (PSL, seção venezuelana da UIT-QI), os que se viram obrigados a agregar o número 100% para exigir uma verdadeira estatização do petróleo. Era a forma de lançar uma consigna contraposta ao enganoso 51% do chavismo. Assim popularizaram a frase “por uma PDVSA 100% estatal dirigida por seus trabalhadores” como a única medida que permitiria acabar com o saque a um país capitalista e semicolonial. A gestão e o saque dessas empresas mistas foram justamente o que arrastaram o povo venezuelano à essa realidade de fome e ajuste.

“Exproprie-se!”, o slogan de que fala Etchevehere, foi pronunciado por Chávez em várias ocasiões após a reeleição de 2006, em especial referindo-se a algumas empresas industriais. A experiência foi um fracasso. As chamadas “expropriações” não foram mais que compras a preços astronômicos que não trouxeram nenhum benefício para seus trabalhadores e nem para o país. Na maioria dos casos se tratou de pura propaganda, e em outros foi a abertura de caminho para o saque, com o citado esquema das empresas mistas.

Muitas dessas empresas “expropriadas” hoje estão fechadas, semiparalisadas ou em crise terminal. Isso foi consequência também daqueles que ficaram responsáveis pela administração: burocratas, “boliburgueses”, sem nenhuma participação e nem respeito pelos acordos dos próprios trabalhadores. Nossa proposta sempre foi a inversa, que a gestão deve ser feita pelos próprios trabalhadores. São eles quem têm os conhecimentos e capacidades para colocá-las para funcionar. Como já havíamos visto na própria Venezuela em 2003, frente ao lockout na mesma indústria petroleira, foram os próprios trabalhadores, com o fortíssimo protagonismo de dirigentes sindicais do PSL, como Orlando Chirino e José Bodas, os que a colocaram para funcionar.

E na Argentina? 

Na Argentina, em 2012, durante o governo de Cristina Kirchner, aconteceu a expropriação parcial da YPF. O projeto de lei impulsionado pelo FpV defendia que a petroleira continuaria sendo uma sociedade anônima, que participaria da Bolsa de Valores e que, portanto, deveria obedecer à orientação exigida pelos acionistas privados. A empresa mista, uma vez mais, é uma artimanha para que o Estado se responsabilize pelas perdas, e os interesses privados fiquem responsáveis pelos lucros. Hoje estamos diante do mesmo perigo com a proposta do governo peronista de que Vicentin possa ser uma empresa mista com 51% estatal.

A gestão do peronismo kirchnerista apresentou a “reestatização” da YPF como “a recuperação da soberania petroleira”. A Repsol recebeu 5 bilhões de dólares em títulos e os saqueadores continuaram livres para seguir fazendo negócios, como ficou demonstrado posteriormente com a escandalosa entrega para a Chevron.

Desde sua fundação em 1922, a YPF, na medida em que descobria e extraía campos de petróleo, promovia a abertura de escolas, estradas, hospitais e moradias. Suas redes de serviço cobriam todos os cantos do país. Na área de extração chegou a ter duas plataformas marítimas de primeiro nível mundial. Em sua época também foi pioneira na construção de refinarias. A YPF estatal foi um modelo para toda a América Latina, com sua contribuição se fundaram empresas estatais de Petróleo no Brasil, Bolívia e Peru. Da mesma forma que as ferrovias, a YPF integrava a nação. Esse exemplo demonstra que a propriedade estatal pode ser eficiente e satisfazer as necessidades do povo.

Nós do Izquierda Socialista seguiremos exigindo a retomada do controle das riquezas do subsolo para colocá-las a serviço dos setores populares, com uma YPF 100% estatal e dirigida por seus trabalhadores.

O mesmo exigimos para Vicentin e todas as atividades que hoje estão nas mãos do grande capital e das multinacionais, como o comércio internacional de grãos e alimentos, a energia elétrica, a distribuição de gás, as ferrovias, a educação e a saúde, hoje escamoteada em plena pandemia.

Todas essas atividades essenciais devem estar a serviço de satisfazer as necessidades do povo e não ser fonte de lucros para os capitalistas. Somente com a estatização sem indenização e sob controle dos trabalhadores é que alcançaremos a soberania política e econômica.

 

Fonte: Por que o chavismo fracassou? De Simón Rodríguez Porras e Miguel Sorans. Publicado no Brasil pela Edições Combate Socialista.

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