O BBB e as armadilhas da identidade

Joice Souza e Natalia Granato, Coordenação da CST

O ano de 2020 foi marcado por uma rebelião negra a nível mundial, derrubando estátuas e colocando fogo em delegacias, contando também com a presença massiva de pessoas não negras apoiando os protestos e protegendo manifestantes negros. Chegou ao Brasil, com atos em junho e em novembro, após o assassinato de um cliente negro por seguranças do Carrefour. Os questionamentos aos crimes cometidos diariamente pelos instrumentos de repressão públicos e privados tiveram maior visibilidade, pela força dos protestos, obrigando a mídia burguesa a se relocalizar, começar a pautar o Brasil racista, abrir espaço para temáticas raciais e ter profissionais negros entre seus quadros. Nesse contexto em que há enorme cobrança por valorização e representatividade negra, a Rede Globo preparou a 21ª edição do BBB, com o maior número de participantes negros da história.

A rede de televisão preparou um grande coliseu moderno, com um casting problemático, e a produção buscou potencializar os conflitos étnicos, onde participantes, simplesmente pelo fato de pertencerem a grupos historicamente oprimidos, se sentiram à vontade para praticar autoritarismo e opressão dentro do próprio grupo ao qual pertencem. A maior beneficiada é a rede do plim-plim, provocando o esvaziamento dos debates raciais e deslegitimando a luta negra por meio do seu entretenimento.

 

Um debate sobre local de fala e representatividade

As posturas de participantes negras/os, sobretudo da rapper Conká e da psicóloga Lumena, chocaram ainda mais por se tratarem de pessoas engajadas na luta antirracista. Esses acontecimentos do BBB nos trazem reflexões sobre os rumos que têm tomado os debates sobre local de fala e identidade no seio dos movimentos contra as opressões.

Diversas correntes definem que a sociedade está dividida em categorias identitárias cuja combinação de identidades determinaria o seu local de fala (mulher-negra, homem-branco-hétero, branca-mãe-lésbica, etc). A partir disso, defendem a ideia de que o pertencimento a determinado grupo oprimido deve conferir a seus indivíduos maior autoridade discursiva sobre os temas relacionados a essa opressão, ou mesmo exclusividade. O local de fala seria uma espécie de combo das experiências coletivas e até mesmo ancestrais de um grupo, adquiridas por um indivíduo a partir de suas “vivências”.

O primeiro problema é que a ideia de um “local de fala” comum a todos os membros de um grupo oprimido e adquirido a partir do pertencimento a esse grupo conduz a que opiniões individuais sejam apresentadas como coletivas ou mesmo como “fruto da experiência ancestral”, logo, são inquestionáveis. Também é possível que determinada vertente política ou acadêmica seja imposta como verdade e que todas as opiniões divergentes, dentro do mesmo grupo, sejam apresentadas como traições ou fruto de manipulações dos opressores, tal como vimos os participantes negros do BBB serem tratados como manipulados ou “aliados dos brancos”.

O segundo problema é a segregação que pode surgir da constante fragmentação em mais e mais categorias e locais de fala, gerando verdadeiras ilhas que muitas vezes rivalizam entre si. Assim, vemos negros/as de pele clara tendo sua negritude questionada (o colorismo), bissexuais sendo questionados por se definirem como LGBT (a bifobia), etc. Em vez de combater o silenciamento, isso acaba silenciando quem é considerado/a “menos negro/a”, “menos LGBT”, “menos mulher”.

O terceiro problema, e para nós o principal, é que todo esse debate não leva em conta a existência de um sistema capitalista que nos divide, não em categorias identitárias, mas em exploradores e explorados e que se utiliza das opressões existentes para superexplorar mulheres, negros/as, imigrantes, LGBTs etc.

Para nós, é preciso entender os setores oprimidos como seres sociais pertencentes a uma classe e seguidores de determinada política. Assim, haverá, por exemplo, gays burgueses e gays trabalhadores, como também haverá negros de direita e de esquerda, reformistas e revolucionárias, ou que não querem se envolver com política. Esses setores têm lutado e lutarão cada vez mais, mas nem sempre na mesma trincheira, uma vez que há uma minoria de oprimidos que estão entre os que exploram (burguesia) e há oprimidos que são explorados.

 

O caminho é a luta unificada e nas ruas

O reality provocou uma onda de indignação e questionamentos, principalmente a partir da desistência de um dos participantes, o jovem Lucas Penteado, vítima de vários ataques dentro da casa. O BBB nos mostrou justamente o contrário do que pretendia a Rede Globo. Não há saída dentro de uma perspectiva individual de combate às opressões e não nos basta aumentar a representatividade em espaços televisivos. Faz falta um projeto radical de mudança.

As opressões são produzidas e reproduzidas dentro da sociedade capitalista e não é possível superá-las sem derrotar o capitalismo. Por isso, se faz necessário batalhar por uma perspectiva anticapitalista dessas lutas. É preciso realizar ações de protesto contra a terrível realidade que nos mata, contra o desemprego, por vacinação ampla, pelo fortalecimento do atendimento especializado em saúde mental, além de buscar unidade com os trabalhadores, o movimento de mulheres e LGBT, contra Bolsonaro.

 

(originalmente publicado no jornal Combate Socialista n° 123)

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