A série “MAID” e a sobrevivência das mães solteiras no capitalismo do século XXI – alguns breves comentários

Por Liliana Maiques

 

 

(contém spoilers!)

 

 

Das leituras que venho fazendo, no livro “Mulheres Trabalhadoras e marxismo – um debate sobre a opressão” escrito por Carmem Carrasco e Mercedes Petit e editado pela José Luis e Rosa Sundermann, me deparei com um trecho muito interessante que compartilho aqui, sobre as consequências da incorporação da mulher ao mercado de trabalho:

“Essa incorporação massiva da mulher à produção e à escola é pré-condição para sua libertação, mas elas pagam bem caro por isso: há mais mulheres assalariadas e educadas, mais advogadas, médicas e jornalistas, mas há também mais mulheres desempregadas, com trabalhos precários (na Europa ocupam 80% dos trabalhos em tempo parcial) e com menores salários (em média ganham 27% menos) enquanto se generaliza a dupla exploração por sua condição de trabalhadoras e mães. A conclusão é simples: as mulheres são 70% dos pobres do mundo, mesmo representando quase a metade da força de trabalho. A mais importante consequência social dessa introdução massiva da mulher, em especial da mãe jovem (e na maioria dos casos, solteira), ao mundo dos assalariados, foi a dissolução da família para a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras, convertendo-se num luxo só permitido para a burguesia e algumas faixas da classe média. Assim, o capitalismo cumpriu uma missão histórica: enterrar a família”

 

“A dissolução da família, sem qualquer alternativa estatal que a substitua – restaurantes, creches, lavanderias coletivas -, em meio à crise da educação e da saúde pública, cria situações sociais alarmantes: os filhos ficam largados à sua própria sorte; as mães sozinhas devem responder pela educação e manutenção dos filhos; aumentou a incidência de gravidez entre as adolescentes, que abortam correndo risco de vida; as crianças ficam sob os cuidados dos avós – ou da avó – e é provável que não se saiba quem é o pai. A degeneração social se traduz no aumento do consumo de drogas e na violência doméstica contra a mulher…”.

Por indicação de uma amiga, fui assistir a série “Maid” (criada, faxineira, empregada doméstica). A série é uma adaptação do best-seller autobiográfico de Stephanie Land, de 2019 “Maid: hard work, low pay and a mothers will to survive” ou “Faxineira: trabalho duro, salário baixo e a vontade de uma mãe para sobreviver.”

Eu achei que era uma série sobre violência doméstica. E é, mas não principalmente. O foco é a saga de Alexandra (protagonista) para ter acesso aos benefícios estatais (políticas públicas de sobrevivência) para conseguir se separar de Sean, pai da pequena Maddy. Ela estava desempregada e essa condição, da falta de autonomia financeira, se encontra com a condição de Sean, alcóolatra e abusivo. Os dois jovens, de 25 anos frustrados nos seus sonhos, só possuem sua força de trabalho para sobreviver.

Alex, depois de mais um pico do ciclo de violência de Sean, resolve sair de casa com Maggye, no meio da noite. Com medo, com menos de U$ 50 no bolso, Alex não tem para onde ir. Ela tem um carro, que é onde passa a noite com a filha, dentro de um parque. A partir daí começa sua saga por moradia. Mas a burocracia estatal, que serve como empecilho para que ela tenha acesso aos meios de sobrevivência, exige emprego para lhe dar moradia. Ela, sem formação para melhores colocações, vai trabalhar em uma terceirizada de faxina, onde ela praticamente paga para trabalhar. A gasolina para chegar na casa das clientes, o material de limpeza, comida, tudo por sua conta. Sem benefício algum. Não pode atrasar, senão, rua. O que a empresa lhe oferece? Um sub-cliente (já que a terceirizada fica com parte do pagamento) e o aspirador de pó – que precisa ser devolvido todos os dias. É aquela espécie de “empregador” que só fica com os bônus do negócio. Os riscos, ficam todos com os que trabalham. Coisas do capitalismo do século XXI. Se o cliente não gostar do serviço, quem fica sem receber é quem limpou. Terceirização. Tem quem defenda. Deve ser porque nunca precisou ser tão explorado.

As vezes a história lembra um filme do Costa Gavras, quando ela sequestra o cachorro da cliente para receber míseros U$ 37,50 (preço da faxina) que não recebeu porque a cliente é preciosista e cruel. Situações de desespero, de quem conta os centavos para viver. O desfecho do episódio é melhor do que poderia ter sido. A cliente é a da casa em que Alex desmaia de fome no meio da faxina.

Alex tem uma filha de 2 anos, que não tem com quem ficar. A mãe de Alex não tem condições de cuidar de si, já que tem problemas de confusão mental – que se agravam com o tempo. O pai, alcoólatra e violento. Quando era casado com sua mãe e, atualmente, com a madrasta de Alex. Um momento dos mais marcantes é quando o pai de Alex se recusa a testemunhar a favor da filha, porque é o único que presenciou um dos momentos de violência de Sean. Ela perde a guarda de Maggye por uma semana. Ele se recusa porque, como é violento com suas mulheres, é cúmplice da violência de Sean e não é capaz de apoiar a filha. Mulheres não podem contar com homens. Homens se apoiam. É compreensível, embora não mais aceitável sob qualquer hipótese, que situações como a de Alex se perpetuem. Como sair dessa situação se nem seu pai, em um momento tão decisivo, te apoia?

O surto violento de Sean quase machuca Maggye e apesar disso, logo que ela sai de casa, o primeiro movimento de Sean é se aproveitar da fragilidade social de Alex e tirar sua guarda. Não para ficar com a filha, mas para deixá-la com a avó. E, principalmente, longe da mãe. Alex encontra mil dificuldades para ver a filha, para conviver com ela, porque não tem moradia, não tem emprego e porque não tem com quem deixá-la.

A série levanta inúmeros debates sobre a condição da mulher. Um dos mais importantes é que não se cria uma criança sozinha. Não em um mundo capitalista em crise, que super explora a mão de obra de tal maneira, que para sobreviver é necessário trabalhar por muitas horas. É incompatível oferecer estabilidade e rotina para uma criança se você tem que trabalhar em mil lugares todos os dias. Você precisa de suporte para dar conta. Precisa de creche. Na série, a creche que Alex pode pagar confunde sua filha na hora da entrega, porque a perderam horas atrás. Ela estava escondida em um armário. Como uma mãe trabalha tranquila se deixa sua filha em uma creche onde ela fica sumida o dia inteiro? Não há qualquer estímulo pedagógico e o espaço não é mais do que um depósito de crianças, que ficam jogadas à própria sorte. Uma boa creche, custa muito caro para uma mulher trabalhadora. A cada dia o que é público, usado por quem não tem recursos para pagar um serviço melhor, em qualidade precária.

Um aspecto importante é o isolamento de Alex. Ela não tem amigos, não conta com suporte da família, não tem vida própria. A falácia vendida pela monogamia, de que a sua relação afetivo-erótica vai lhe suprir tudo, é tão cruel que só é compreendida quando começa a ruir. Essa situação é favorável para o abuso de Sean. Se ela não tem para onde ir, ela passa a ter um destino certo: voltar para ele. E a existência de Maggye e os cuidados que ela demanda, funcionam como uma grande bola de ferro, que a seguram pela responsabilidade de um teto e comida para a filha. Sean se aproveita disso para exercitar toda sorte de violências psicológicas. E mesmo Alex acredita que não deve denunciá-lo porque ele nunca a espancou. Embora ela tenha feridas profundas, as marcas não são visíveis a olho nu. E ela não se sente merecedora da atenção dada às vítimas de violência doméstica, porque acha que sua violência é “menos grave” que de outras.

Uma outra questão que surge da condição de Alex: a ausência de autonomia financeira a deixa extremamente vulnerável. Num ato de desespero, ela sai no meio da noite para fugir do homem violento com quem divide a cama. Mas sem dinheiro, sem emprego, sem suporte, por quanto tempo ela pode sustentar uma vida sem violência?

E aí podemos voltar ao livro de novo. Se a gente já passou mais de 50 anos repetindo que o socialismo não acaba com a desigualdade de gênero como num passe de mágica, por outro lado já passou da hora de reafirmarmos que o centro da autonomia das mulheres é a questão econômica. Sem ela, não há como sair definitivamente do ciclo de violência. E fico pensando, com a falência da Nova República e com a falácia do Estado de bem-estar social, que nosso eixo de luta feminista precisa focar na destruição do capitalismo e não para tentar melhorar suas migalhas, cada vez mais escassas e cada vez para menos pessoas. Isso não quer dizer que não devemos lançar mão dos mecanismos das redes de atendimento às vítimas de violência, e de responsabilizar o Estado por segurar essa pemba. Mas hoje (dia 10 de outubro) é dia nacional de luta contra a violência sexista. E não há como não refletir, em perspectiva histórica, sobre o que foi feito, por uma geração inteira, além de cobrar que o Estado resolvesse a questão. Um Estado a serviço do capital? É intrínseco que não resolva e que se agudize a condição das mulheres que lutam contra aquilo que as aprisiona: a exploração de classe que sofrem, que as destituem de autonomia e a encerram na prisão chamada amor que as mutilam e as matam. Ou tomamos a tarefa para nós, em auto-organização, de destruir a base do que nos oprime, como mulher e como classe, ou de nada servirão os louváveis esforços de anos de luta para melhorar o que já faliu faz tempo. Ou que nunca deu certo.

Com a proximidade do Dia Internacional de combate à violência sexista, ficam algumas reflexões sobre nossa condição: segundo o IBGE, são 11 milhões de mães solteiras no Brasil. São mulheres responsáveis por cuidar dos filhos, conciliar trabalho e sustento financeiro da família. 63% das casas brasileiras chefiadas por mulheres estão abaixo da linha de pobreza. E no período da pandemia, a situação das pessoas mais pobres se agudizou. 45% das empregadas domésticas (diaristas e mensalistas) foram dispensadas, sem nenhum aporte social do Estado. Como as mulheres pobres podem viver sem violência enquanto perdura sua exploração de classe? Na periferia do mundo, de onde falamos, o Estado falido e mergulhado em crise econômica crescente, tem condições de interromper essa violência e recuperar as condições de sobrevivência das mulheres mães solteiras? O que faremos nos próximos 20 anos para tirar as mulheres da condição de violência em que vivem?

Uma coisa é certa: não se altera substancialmente a vida das mulheres – e sua condição de classe, sem enfrentar as políticas que as encarceram nas situações de violência. O fim da submissão financeira das mulheres não se dará no capitalismo, em crise profunda. É preciso garantir a auto-organização das mulheres para lutarem pelos seus direitos, para exigirem dos governos que garantam as políticas públicas que lhes dê suporte mínimo para saírem da situação de violência e dependência. Auto-organização porque os homens de nossa classe também são violentos e abusivos. E nossa condição comum de classe não os impede de nos oprimir enquanto mulheres. Para uma vida sem desemprego, sem violência, é preciso ir ainda mais fundo. É preciso lutar por uma outra sociedade, livre da prisão do dinheiro e do poder que o acompanha. Uma sociedade socialista. Não é utopia. É perspectiva estratégica. E é preciso lutar para mantê-la em nosso horizonte.

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