A questão ucraniana e a atitude marxista revolucionária

por Muhittin Karkin, dirigente do Partido da Democracia Operária (IDP), seção da UIT-QI na Turquia em 27/02/2022.

O problema da Ucrânia, que entrou com toda sua gravidade na agenda da opinião pública mundial a partir da invasão por parte da Rússia, voltou a funcionar como tornassol na política mundial e, principalmente, nos setores de esquerda. Ainda que exista um povo submetido à opressão e exploração há séculos, os chamados especialistas e semimarxistas que se consideram líderes de opinião da esquerda, assim como os pesos pesados da diplomacia e os pedantes comentaristas das telas, atribuem-se a autoridade de reduzir o problema à pergunta “Quem tem a razão?”. Tudo isso acompanhado de imagens do metrô de Kiev e manifestações de paz lotadas.

Alguns comentaristas liberais e pacifistas, acompanhados de imagens de destruição e morte causadas pelos mísseis e tanques russos, atribuem a causa da guerra à autocracia de Vladimir Putin e suas ambições expansionistas que beiram a loucura. Dizem que as sanções econômicas e diplomáticas anunciadas pela aliança Ocidente/OTAN, liderada por Joe Biden, não serão suficientes para deter esta guerra unilateral, que, na realidade, é uma invasão. Essas alegações, que não são de todo injustas, não passam de explicações superficiais. Os donos dessas reivindicações, por suposto, evitam explicar por que a situação indefesa para a qual o imperialismo ocidental arrasta o povo trabalhador da Ucrânia cria um ambiente de guerra inevitável.

Os que atribuem a invasão da Ucrânia à inteligência e previsão de Putin, e não à sua loucura, pensam que o líder russo está demonstrando uma reação justificada contra a OTAN imperialista que quer cercar a Rússia. Ao ver os objetivos expansionistas do regime oligárquico da Rússia como um problema secundário, este setor da “esquerda” afirma, baseado na teoria do “inimigo principal”, que a “autodefesa” da Rússia contra o imperialismo estadunidense é uma aspiração justa. Para os partidários dessas opiniões, o tema principal é que a Rússia está combatendo a ameaça do imperialismo com um bombardeio militar na Ucrânia, e que Putin está “colocando os chacais imperialistas de joelhos”. Também, com uma cegueira similar à dos liberais, mas por outro ângulo, fazem vista grossa ao caráter de classe da oligarquia e do regime russos. Para eles, as estratégias diplomáticas e militares dos Estados burgueses são mais determinantes que a análise de classe marxista.

Enfoque marxista revolucionário

O caráter dos Estados e as alianças internacionais são, obviamente, importantes. A partir dessa caracterização, os marxistas internacionalistas passaram por muitas provas e adquiriram experiência sobre as posições a se tomar e que política seguir nos conflitos entre países.

A principal delas são as guerras entre os países imperialistas. No conflito internacional mais importante da era imperialista, a Primeira Guerra Mundial, os líderes revolucionários internacionalistas, com Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo à frente, romperam com a atitude chauvinista dos partidos socialdemocratas, que apoiavam os governos burgueses de seus próprios países, e chamaram os operários e camponeses, que foram conduzidos ao front de batalha em uniformes de soldados, a apontarem suas armas para os próprios generais e governos. A política principal foi converter a guerra imperialista em uma guerra civil e uma revolução socialista dentro dos países imperialistas. Foi esta política que preparou a grande Revolução Russa de 1917.

Enquanto o governo turco, confuso sobre como deve-se implementar o tratado de Montreux sobre o estreito de Istambul, analisa se o conflito em curso na Ucrânia é uma guerra ou não, a realidade é que se trata da permanência de um estado de guerra não declarado por ambas as partes (Rússia e Ucrânia), com a única diferença que os combates começaram quando as tropas russas entraram em território ucraniano sem aviso prévio. Trata-se de uma operação de invasão aberta. Para deixar mais nítido: a situação com a qual nos deparamos é a invasão de um país semicolonial (Ucrânia) por um país imperialista (Rússia). Neste ponto, a atitude dos internacionalistas revolucionários é apoiar o país semicolonial/dependente contra a agressão imperialista, independentemente de seu regime. Aqueles que se afastam desse princípio são abertamente descritos na literatura marxista como contrarrevolucionários.

Frente a isso, pode-se defender a tese de que a Rússia não é um país imperialista, mas semicolonial/dependente. Mas, mesmo assim, não mudaria a atitude a se tomar. Os revolucionários internacionalistas sempre se posicionam contra o agressor nos conflitos entre países dependentes. E o agressor na Ucrânia, seja considerado imperialista ou semicolonial, é a Rússia.

O fator EUA/UE/OTAN

Os que afirmam que, na verdade, trata-se de uma guerra imperialista na Ucrânia entre a OTAN e a Rússia, somente para poder fechar os olhos para a luta de décadas que os ucranianos levam adiante por seu direito à autodeterminação, baseiam seus argumentos sobre a realidade de que o governo é pró-ocidentalista. No entanto, não há tropas ou bases da OTAN em solo ucraniano, nem o presidente estadunidense Biden afirma que entrarão em conflito armado com a Rússia na Ucrânia. Pelo contrário, os governos imperialistas ocidentais estão anunciando que se contentarão com sanções econômicas contra a Rússia, e o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, queixa-se em gravações de vídeo, com uma expressão triste em seu rosto, que o Ocidente os abandonou.

Suponhamos, por um momento, que o imperialismo ocidental está manipulando o exército ucraniano nessa guerra e iniciou a guerra imperialista através dele ou está exposto a tal guerra. Como podemos imaginar que os países imperialistas ocidentais permitiriam a inevitável derrota das forças armadas ucranianas, que deveriam contentar-se em praticamente construir um muro de carne contra as imensamente poderosas tropas russas? Que potência imperialista pode aceitar a derrota sem utilizar todas as suas capacidades militares?

Há mais: por que os chamados marxistas, que declararam a invasão da Ucrânia como uma guerra imperialista, não chamam os soldados de ambas as partes a virarem as armas contra seu próprio governo? Essa agitação certamente é necessária contra as tropas russas e dentro da própria Rússia, mas é possível neste momento chamar os soldados ucranianos, que estão convocados a defender seu país contra a ocupação imperialista, a levantar-se contra seu próprio governo? Quem faz isso é Putin, chamando o exército ucraniano a dar um golpe contra Zelensky. É possível e necessário pedir aos soldados ucranianos que derrotem seu próprio governo somente se o governo burguês e as forças armadas ucranianas cooperam com o ocupante imperialista. A principal palavra de ordem de agitação revolucionária na Ucrânia é que a independência e a soberania do país só podem ser garantidas sob um governo operário. Ou os invasores russos ou os trabalhadores ucranianos, que querem determinar seu próprio destino, derrotarão o governo de Zelensky, que busca a ajuda dos imperialistas ocidentais.

Independência da Ucrânia

Os oportunistas, que veem a destruição da soberania da Ucrânia por parte da Rússia como o golpe “anti-imperialista” de Putin contra o imperialismo dos EUA/UE/OTAN e, portanto, assumem o papel de porta-vozes do grande chauvinismo russo, estão posicionando-se contra a vontade e independência de um povo.

Putin, que afirma que os ucranianos são, na realidade, russos, acusa Lenin de conceder à Ucrânia o direito à autodeterminação, vê a Ucrânia como uma unidade econômica e administrativa da Grande Rússia, da mesma forma que Stalin, e acusa o governo ucraniano, com um presidente de origem judia, de ser nazista. Os eslavófilos podem aceitar seus pontos de vista, mas é inaceitável que aqueles que se chamam marxistas subestimem o direito à autodeterminação de um povo apenas para defender suas teses “anti-EUA”. Essas pessoas não têm lugar no campo revolucionário internacionalista.

O povo ucraniano é um povo oprimido e explorado, primeiro pelo czarismo russo; depois de um breve intervalo leninista-trotskista, em que adquiriu o direito à autodeterminação, foi oprimido pela burocracia stalinista; e agora pelo imperialismo e expansionismo russo. Dividido entre todas essas pressões, buscou sua independência no equilíbrio entre as grandes potências que o rodeavam. Nos primeiros anos da Revolução de Outubro, pôs sua esperança na Revolução Russa, que destruiu o czarismo, e no Partido Bolchevique; mas, quando as pressões aumentaram pela corrupção nacionalista do partido e do Estado soviético pelo stalinismo, foi empurrado para a Alemanha de Hitler, pelo que foi severamente castigado por Stalin. É um povo que, apesar de obter a independência virtual depois da dissolução da União Soviética, foi governado e explorado por oligarcas russos, e que, depois de derrotar o poder pró-russo com um levante, depositou suas esperanças de conservar a soberania em cooperação com o Ocidente.

Atualmente, não tendo existido as pressões do chauvinismo da Grande Rússia, poderia o povo ucraniano ter alguma expectativa do imperialismo ocidental? Se os partidos comunistas russo e ucraniano reconhecessem a independência e soberania da Ucrânia e afirmassem que isso só pode ser conquistado através de governos operários que se estabeleçam nestes países, não prefeririam os trabalhadores ucranianos uma aliança com o proletariado russo? É precisamente esse vazio de liderança revolucionária que abre espaço para o imperialismo estadunidense nos países dependentes. Aqueles que se definem como marxistas deveriam primeiro advogar pelo direito à autodeterminação do povo ucraniano, que levou Zelensky ao poder com mais de 70% dos votos, ao invés de acusá-lo de ser pró-ocidental.

Os que veem uma guerra na Ucrânia entre o imperialismo estadunidense, que parece apoiar a independência dos ucranianos, e a Rússia “anti-imperialista”, e evitam defender o direito da Ucrânia à autodeterminação sob esta poluída nuvem ideológica que criaram, quando levarem esses argumentos para o Iraque e a Síria, deveriam considerar que tipo de frente oportunista tomarão contra o povo curdo; porque não será difícil prever as consequências lógicas de suas posições no Curdistão.

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