Nicarágua: Entrevista com Yader Parajón, um dos presos libertados

Por Imprensa UIT-QI

“A luta deve continuar”

Entrevistamos o jovem lutador nicaraguense Yader Parajón, um dos 222 presos libertados na Nicarágua, em 9 de fevereiro, pela ditadura de Ortega-Murillo. Parajón foi libertado junto com a ex-comandante sandinista Dora María Téllez, o líder estudantil Lester Aleman e o líder camponês Medardo Mairena, entre outras e outros presos por se oporem ao regime repressivo.

Yader Parajón é um renomado lutador de direitos humanos e membro da AMA (Associação Mães de Abril). Ele tem 32 anos e foi preso em setembro de 2021, depois de ter se tornado defensor dos direitos humanos e da liberdade na Nicarágua, após a morte de seu irmão Jimmy, como resultado da repressão criminosa de Ortega na rebelião de abril de 2018. Jimmy tinha 35 anos de idade e foi assassinado em Manágua, em 11 de maio daquele ano, com um tiro no peito, quando protestava nas proximidades da Universidade Politécnica.

Desde então, Yader levantou a bandeira contra a impunidade por esse crime, bem como o de outras 450 pessoas assassinadas, e pela liberdade de todos os presos políticos. Ele fez parte de uma “caravana internacional”, que em julho-agosto de 2018 percorreu Peru, Chile, Argentina, Uruguai e Brasil denunciando esses crimes. Na Argentina, os membros da caravana foram recebidos na sede da Izquierda Socialista, a seção argentina da UIT-QI. Lá, foi coordenada a realização de uma palestra dos integrantes da caravana na Faculdade de Ciências Sociais, na qual falaram Yader e duas companheiras nicaragüenses. Também foi realizada, junto com outras organizações, uma manifestação em frente à embaixada da Nicarágua. Desde então, Yader continuou sua luta até ser preso em 2021.

A entrevista foi conduzida por Pablo Almeida, líder da Izquierda Socialista e membro, em nome da UIT-QI, da Comissão Internacional pela Vida e Liberdade dos Presos Políticos na Nicarágua. A Comissão viajou para a Costa Rica, de 6 a 8 de julho de 2022, e foi até a fronteira com a Nicarágua, onde Ortega impediu sua entrada no país.

Yader Parajón respondeu às perguntas, via internet, dos Estados Unidos, país para o qual foi deportado.

Pablo Almeida: Você foi injustamente condenado a 10 anos de prisão. Como foi sua prisão e seu julgamento?

Yader Parajón: Fui detido na fronteira terrestre entre Nicarágua e Honduras, no posto de imigração de Guasaule. Fui detido em 4 de setembro de 2021, às 5h26 da manhã, quando estava indo para o norte da América Central. Fui retirado do ônibus, questionado sobre minha participação no ativismo pelos direitos humanos, o que estava estudando e qual era o meu envolvimento. E sem qualquer explicação, simplesmente me disseram, antes de tais questionamentos: “você não pode continuar sua jornada, é uma ordem de cima”. E perguntei ao pessoal da imigração de quem era a ordem de cima, e eles não souberam me responder. Ele simplesmente me disseram: “…é uma ordem de cima e você não pode continuar sua jornada”.

Então, me apresentaram uma foto impressa de um protesto, publicada na mídia, e começaram a me perguntar sobre minha participação; me mandaram para uma sala e uma hora depois, quando o ônibus já havia partido para Honduras, outros quatro oficiais começaram a me questionar e a me perguntar sobre a caravana no Cone Sul, que participei com outros companheiros em 2018. Eles me prenderam lá por mais duas horas, começaram a checar meu telefone, a revirar a minha mala. Disseram-me que iria ser transferido para o quartel de polícia, para a prisão de Somotillo, que fica no município de Chinandega, na fronteira com Honduras.

Uma vez lá, fui espancado pelo investigador José Vallecillo, que pertence às forças especiais. E ele me ameaçou com uma arma mecânica, com a qual iria me quebrar e furar meu peito. Fui interrogado, ameaçado e espancado por esse inspetor em uma pequena sala, nas celas de Somotillo.

Uma hora depois me transferiram de Somotillo para Manágua, a capital, para ser novamente interrogado e levado para o distrito número 3. E lá passei por um novo interrogatório, nos 4 dias seguintes (sábado, domingo e segunda), sendo espancado semi-nu por este mesmo oficial, fanático. Ele me perguntava quem estava nos financiando, por que contamos, segundo ele, mentiras. Por que estávamos fazendo esse tipo de coisa, desestabilizando o país, se “era um governo tão bom”? Ele ainda fez comentários homofóbicos, alegando que havia sido parceiro de outros ativistas jovens, políticos e estudantis. Seguiram-se torturas físicas e psicológicas.

Depois desses quatro dias, me transferiram para o escritório de assistência judiciária, mais conhecido como “El Chipote”, e ali continuaram os interrogatórios. Ameaçaram-me de prender o meu pai. Disseram-me: “Se não falar, vamos trazer o teu pai com pés e mãos amarrados. O que você vai fazer se o trouxer? Eu simplesmente respondia: “Nada, porque nenhum de nós fez nada de errado. Isso é uma injustiça.” E obviamente fui novamente humilhado pela questão da diversidade. E com a acusação de que estava me fingindo de vítima, já que a morte do meu irmão era mentira.

Meu julgamento foi em 1º de fevereiro de 2022. Fui o primeiro, dos 222 prisioneiros, a ser levado a julgamento. Um julgamento fraudulento. Minha prisão ocorreu em 4 de setembro e no registro policial consta que fui preso em 5 de fevereiro. Então, houve até uma incoerência jurídica de datas. Pelo princípio da nulidade, todo o processo judicial foi viciado. E, perante essa incoerência, a lei estabelece que o julgamento seja anulado e que eu seja libertado. Mas, como os mercenários da lei ignoraram as inconsistências, isso não aconteceu. Meu julgamento durou mais de 8 horas (das 8 da manhã às 6 ou 7 da noite). Foi totalmente viciado. A incongruência do discurso era visível. As testemunhas de acusação eram policiais da área da assistência judiciária. Eles se entreolhavam nervosos, temerosos, porque mentiras atrás de mentiras eram ditas. Existem até contradições entre a fala da primeira testemunha, a fala da terceira e a fala da quarta.

Demonizaram o fato de sermos ativistas dos direitos humanos, chamando-nos de terroristas; o fato de termos alguma afinidade com o socialismo, chamando-nos de traidores. Chamavam-me diretamente de traidor da pátria e isso por eu ter um pensamento verdadeiramente voltado para o socialismo e a luta de DD.HH.

PA: Quais eram as condições da prisão em que você estava?

YP: As condições têm nome e sobrenome. Fiquei numa cela de ódio por mais de um ano. Chamei-a assim, porque aquela cela media dois metros de frente por dois metros de profundidade. Só cabia uma cama de concreto, separada por uma mureta do banheiro, que era um buraco onde tínhamos que fazer as necessidades. Uma cela completamente hermética, apenas com uma janela de ferro, um teto de concreto, todas as quatro paredes fechadas. A porta de entrada era de metal, hermética. Tinha apenas uma janela de 22 centímetros de comprimento por 10 centímetros de altura, por onde passava a comida. As condições eram terríveis.

Manágua é uma cidade tropical muito quente. Assim, o problema da desidratação naquela cela era terrível. Você não podia ver nada, não podia ver ninguém. Fomos proibidos, especialmente aqueles de nós que estavam em celas de castigo, de poder se referir a outros companheiros que estavam em celas abertas, celas com grades. Eram condições desumanas, onde o ódio e o falso classismo eram impiedosos contra mim, pela diversidade sexual, e contra o líder camponês Medardo Mairena. Ele foi meu companheiro de cela por mais de um ano, naquela cela de castigo. Por que digo ódio e classismo? Porque eles deixavam isso claro. Eles me disseram: “você é de classe baixa, eles te manipularam…”. Por causa da questão da diversidade, os interrogadores também tiravam sarro de mim, faziam bullying comigo.

Ficamos mais tempo nessas celas. Obviamente, aqueles de nós que estavam em celas de castigo, como Medardo e eu, não nos perguntavam se íamos querer água. O classismo – econômico, religioso e sexual – foi evidenciado como ódio a mim, quando comentei que sofria de ansiedade e eles não se importaram. Eles só queriam nos manter dopados com ansiolíticos e eu desisti dos ansiolíticos. Porque os primeiros meses, em termos de saúde, foram muito duros, muito ácidos.

Então as condições eram assim, naquela cela pequenininha. Eu dormia ali. A gente comia ali, com o cheiro do banheiro, e a gente tomava banho ali mesmo. Recebíamos sol a cada 10 ou 12 dias. Não saíamos ao sol todos os dias. Às vezes eles não davam água, embora tivéssemos acesso à água da torneira. Eram celas permanentemente escuras. No meu caso, quando fazia muito calor, as coisas ficavam ainda mais insuportáveis. Então, acabávamos no colchonete no concreto sem quase nada. Embora exigíssemos o banho de sol, simplesmente diziam que não era autorizado. Não podíamos conversar. Tínhamos que falar baixinho com os companheiros da mesma cela. E, como a minha cela era a última, não tive interação, nem de relance, com outras celas, nem mesmo com os camaradas que estavam nas celas com grades. Mesmo os companheiros que estavam nas celas com grades não podiam falar com outras celas. Era totalmente proibido. Eles te puniam se o encontrassem falando alto e suspendiam seu direito ao sol.

PA: Por que você acha que conseguiram a liberdade, mesmo com aberrações como a cassação da cidadania nicaraguense?

YP: Em primeiro lugar, acho que o conseguimos devido à insistência e perseverança das famílias, que reclamaram a nossa liberdade. Não tínhamos dúvidas de que iam ser ativos nisso, embora não tivéssemos pleno conhecimento, porque estávamos isolados nas celas. Acreditávamos que, em algum momento, isso seria alcançado… Ou eu acreditava, porque a solidariedade latino-americana dos socialistas também fortaleceria nossas demandas internas e permitiria obter melhores condições. Essa foi a minha impressão enquanto estive lá.

Acredito que foi por conta da pressão, mas também há outro fator, interno, que é a possível mas lenta implosão da militância orteguista, que está se encaminhando com cada vez mais força. Porque, social e economicamente, a ditadura de Ortega é insustentável. Há uma caça às bruxas no interior do país, de forma aberrante, que está provocando uma grande onda migratória em direção à América do Norte. E essa falta de sustentabilidade social, a falta de capital humano, está dificultando a ditadura. Mas, no aspecto político, é mesmo a implosão, porque há figuras, mesmo da Suprema Corte de Justiça, sendo processadas. E de alguns outros poderes do país.

Acredito que enquanto crescem as complicações de Ortega, continuamos com a moral elevada que temos na luta pelo direito à liberdade em nosso país, pelo direito à justiça e à verdade. Essas coisas permitiram nossa liberdade, embora com a aberração do exílio. Um exílio que tenta inutilmente, de forma estéril, disciplinar os poucos que restam para garantir sua permanência no poder. E com isso conseguir a permanência econômica e política no poder. Porque desejam morrer no poder. Aspiram ficar mais 10 anos no poder e nós sabemos que na Nicarágua isso não é viável. Não é viável para quem está dentro da Nicarágua, nem para nós que estamos fora e continuamos no ativismo.

Então, a ditadura se vê cada vez mais encurralada, porque não sabe mais, em sua paranóia, em quem confiar e por que confiar. Pois, devido à situação nacional, isso muda a cada dia e até no seu círculo familiar, seu círculo de poder. E por conta dos dilemas enfrentados pelas duas aparentes facções que exercem o poder: o poder de Doña Rosario e seus associados, e o poder de Ortega e seus associados. E as aparentes lutas de que se ouvem rumores dentro do país. Isso também, penso eu, foi um fator determinante para sermos expulsos.

PA: Teve conhecimento na prisão da atividade da nossa comissão internacional, composta por deputados, deputadas e dirigentes de vários países?

YP: Muito pouco. Devido ao isolamento total em que a ditadura nos mantinha em cada uma das celas, ainda que estivéssemos acompanhados, como no meu caso, pelo líder camponês Medardo Mairena. Naquele isolamento, obrigado a falar baixinho com colegas da mesma cela, o castigo era maior ainda para quem falasse com celas vizinhas, seja na frente ou nas laterais. Então, naquele forte isolamento, que durou mais de um ano, ficávamos sem saber das notícias internacionais. As visitas familiares foram irregulares; elas poderiam ocorrer dentro de 40 dias, ou 44 ou mesmo 55 dias.

Após a visita de agosto de 2022, não recebemos novas visitas até novembro de 2022. Ficamos quase 90 dias sem notícias de nossas famílias. Portanto, a pouca informação que nos foi fornecida por nossas famílias estava centrada no ativismo e que estávamos na arena pública e política em nível internacional, em países como Chile e Argentina. Mas sem muitos detalhes, porque nossas famílias, por medo, apenas mencionavam de maneira geral que continuavam falando sobre a Nicarágua fora dela. Mas especificamente sobre a delegação que vocês, companheiros e companheiras, deputados, participaram, com diferentes ações, como chegar à fronteira de Peñas Blanca, foi muito pouco ouvido por nós. Falo pessoalmente porque nossas famílias em geral também tinham medo, porque nossas visitas ocorrriam em quartos muito isolados, com apenas dois parentes. Havia gravadores quando tínhamos visitas familiares.

Muitas coisas não foram ditas por medo de serem presos ou de represálias contra nós de forma física, além da tortura psicológica com a questão do isolamento. Então, por conta desse tipo de coisa, a informação internacional era muito breve ou muito pouco fornecida. Agora que saí, estou percebendo quanto ativismo vocês fizeram, companheiros e companheiras.

PA: O camarada Miguel Sorans, que integrou a Brigada de Combatentes Simón Bolívar em 1979, nos disse que lhe pareceu que sua expulsão do país foi semelhante a quando Daniel Ortega expulsou a Brigada há mais de 40 anos. Como foi? Eles te contaram o que ia acontecer?

YP: Foi de uma forma surpreendente, com muita incerteza, muito medo, já que estávamos totalmente adormecidos, depois de 10/11 da noite de quarta-feira, dia 8 de fevereiro. Absolutamente nada nos foi comunicado, nem na quarta-feira nem quando estávamos no aeroporto. Nenhum policial nos contatou diretamente, nem as autoridades de Chipote, que também é chamado de assistência judiciária. Eles apenas fizeram a logística para chegarmos ao aeroporto, mas as autoridades, como no caso do subcomissário ou do capitão Romero, nunca nos forneceram essa informação. Então isso gerou muita incerteza.

Como foi? Eu dou o passo a passo. Passadas aproximadamente das 11 da noite, porque tínhamos uma ideia da hora aproximada, visto que não só estávamos proibidos de nos comunicar entre celas, como também de saber o dia e a hora. Então, fazendo uma suposição, depois das 11 da noite, fomos até as grades da cela e eles gritaram para nós: “entreguem os uniformes e vistam estas roupas…”. Uma roupa de civil, que usamos na última visita, na segunda-feira, 30 de janeiro, ao Chipote. Então, eles nos chamaram e deixaram todos de prontidão. Acordam todos e dizem de maneira rápida: “Yader, entregue o uniforme e vista esta roupa…”. Eu me viro sonolento para a policial e digo: “O que aconteceu?” E ela me diz novamente para lhe entregar o uniforme e vestir minhas roupas. Obviamente, vejo que é a roupa de segunda-feira, dia 30, da última visita do meu pai. Assustado, vejo outros colegas que se vestem de civis, tiro o uniforme e coloco a roupa. E então se passaram cerca de 40 minutos. O tempo foi passando. Até que começaram a nos chamar, a partir de uma lista, e fomos transferidos para celas maiores, de onde fomos encaminhados para o ônibus. Não sabíamos do nosso destino.

Isso levou cerca de duas horas a mais, esperando em grupos de até 17/20 presos na mesma cela, todos aguardando em pé vestidos à paisana. Eles apenas nos disseram: “são o grupo número 3”. Aí, começaram a nos chamar, uma hora depois, novamente a partir de uma lista, e com esse número da lista você saia para um dos estacionamentos do prédio, onde percebia que havia um ônibus branco, todo lacrado nas laterais, nas janelas, e eles te embarcavam pelo nome. Um ônibus com as luzes completamente apagadas. Você não sabia com quem estava dividindo aquele ônibus, altamente vigiado por policiais da diretoria de operações especiais, tanto por dentro quanto por fora. Havia um dispositivo de segurança, em que cada ônibus era acompanhado por cerca de 4 patrulhas policiais, compostas separadamente por 4 policiais motorizados. Isso era a guarda de cada ônibus. Seguimos em caravana até sairmos daquela zona. Pegamos a auto-estrada norte. Há algum grau de incerteza, porque nunca nos disseram para onde íamos. Tive muito medo. Só pensei que iam nos colocar num avião ou helicóptero e iam nos jogar no mar. A única coisa que me veio à mente foi aquele medo impressionante de que eles pudessem nos fazer desaparecer, como fizeram com muitos durante as ditaduras de Videla ou Augusto Pinochet. Então isso foi um terror.

O ônibus avançava, com um dispositivo que deixava uma passagem livre na estrada. Era tarde da noite, por volta das 2 ou 3 da manhã. E não sabíamos para onde íamos, porque é um caminho para o aeroporto, mas também é um caminho para o sistema prisional, que é o maior de Manágua. Portanto, não sabíamos para onde estávamos indo até entrarmos em um dos portões da Força Aérea, que fica ao lado da estrada do aeroporto internacional. E lá me virei para ver meus companheiros de prisão que estavam no banco de trás, incluindo Max Jerez e José Adán Aguerri. E eu digo-lhes: “José Adán, Chano, Max, vão nos deportar…”. Quando vejo que estamos na estrada do aeroporto e identifico um avião enorme. E é a única coisa que me vem à cabeça: “Max, José Adán, vão nos deportar…”, digo-lhes pela segunda vez. E todo mundo percebe e se entristece, porque estão te expulsando de sua casa, de sua pátria e isso dói muito. E muitos companheiros e companheiras derramaram lágrimas naquele momento, mas permanecendo sempre muito firmes e dignos em suas convicções.

Repassaram, dentro da logística deles, nome por nome, página por página, nos fazendo assinar um documento que afirmava que supostamente decidimos “livremente” sair do país, e que fazia referência aos Estados Unidos. Não fomos consultados, apenas nos deram a orientação: “assine aqui, não escreva nenhum slogan…” ou loucura segundo eles… “assine e desembarque do ônibus”. Foi assim. Assinamos e depois desembarcamos do ônibus, um a um. Havia autoridades diplomáticas e políticas dos EUA lá. Fomos recebidos por eles, com atendimento médico, medida da pressão arterial, oxímetro.

E, a certa altura, também recebemos nosso passaporte nicaraguense, que é nossa única identidade hoje. Desde que fomos presos, nossa carteira de identidade foi tirada de nós pela ditadura. Então, subimos as escadas daquele avião. Foram emoções muito duras, muito presentes. Fomos sobrevoar e ver a capital de cima pela última vez… ou penúltima vez, porque esperamos voltar.

Lembro que subi, degrau por degrau, com os olhos para a frente e as costas eretas. Virei para ver, naquela madrugada escura, o aeroporto de Manágua, de onde sou. E me vi com um mundo de emoções, que diziam “você está livre, Yader, possivelmente… mas você está saindo do seu país”. E eu sabia que estava saindo do meu país, estava deixando meu pai e isso me doeu muito. E subi, andei pelo corredor do avião para encontrar um assento e um copo d’água. Foi assim. Nunca fomos avisados, ​​até o momento em que assinamos e depois percebemos que íamos para o avião.

PA: Imaginamos a alegria no avião, quando todos os libertados se encontraram. Como viu Dora Téllez, a histórica “comandante dois” da revolução de 1979?

YP: Como vi a comandante Téllez, comandante dois? Já via com muito carinho quando consegui sair da cela de castigo, comecei a cumprimentá-la longamente em silêncio, apenas com gestos. Coloquei nela o pseudônimo de “Mi Guapa” (Minha Linda). Porque ela foi uma mulher corajosa também enquanto estava na prisão. Ela resistiu a ser isolada na cela número 1 do módulo masculino. Ela resistiu dia após dia, e nunca perdeu sua identidade revolucionária, sua identidade de não ser submissa e de sempre desafiar mesmo que estivesse isolada, mesmo que recebesse pouca comida, mesmo que demorasse a receber algum remédio. Ela nunca rendeu homenagem às autoridades. Nunca demonstrou reverência.

No avião, a primeira coisa que fiz foi procurar minhas companheiras como Suiyen, como Tamara, como Dora, como Ana Margarita Vigil. Quando a vi, a primeira coisa que fiz foi dizer: “Minha Linda, que bom te ver, te amo muito e te dou um abraço.” E dei um abraço nela… ambos eufóricos. E olhei para ela, magoada e com olhinhos nostálgicos, saindo de seu país. Feliz ao mesmo tempo por encontrar seus companheiros e seu parceiro. Em instantes você sente sua vibração, sua aura. Uma mulher confiante, muito forte e digna, mesmo quando está na prisão e isolada. E, mesmo naquele avião, aquela resistência e aquela dignidade persistiram durante a viagem. Sem deixar de manter sua voz firme e digna, crítica à ditadura. E com muita, muita, muita convicção de que a Nicarágua precisa ser livre. Precisa se livrar da ditadura, precisa se livrar da política barata. E de que ela está aí, resistindo. E embora este olhar denotasse nostalgia por ter saído da sua pátria, por ter saído da sua casa, tinha no fundo, na sua alma, muita convicção na democracia que temos exigido e defendido.

PA: Estamos entre aqueles que não consideram que o regime de Ortega-Murillo seja de esquerda. É uma ditadura a serviço dos exploradores, que acabará caindo. Como vê o futuro da luta do povo nicaraguense?

YP: O que posso dizer… Ortega não é de esquerda. É um governo que mente, que se rendeu aos grandes poderes econômicos aliados para banir os camponeses, para banir a classe trabalhadora, para manipular através de pequenos aumentos salariais.

Como vejo o futuro da luta do povo nicaraguense? Embora seja verdade que não se pode permitir que a ditadura continue, nem seus vícios políticos nem seus atos a serviço dos poderes de fato, econômico e político, é preciso pensar em um grande acordo nacional em que caibam todas as convicções ideológicas e religiosos para derrubar a ditadura. Hoje, mais que um discurso frontal, tem que ser um discurso que cerque Ortega por todos os lados para conseguir sua queda.

Na questão do acordo nacional, é vital uma agenda em que a primeira coisa que deve ser restaurada é a institucionalidade do país. É por isso que a luta deve continuar. Deve assumir o matiz de uma unidade verdadeira e sincera, em que estão todos os atores políticos, líderes sociais, ativistas de direitos humanos, líderes juvenis, simpatizantes, etc. Devemos ter o compromisso de acabar com o egoísmo e realizar uma ação e uma agenda propositiva, no marco desse acordo nacional, que possa dar esperança ao povo da Nicarágua.

Hoje, nós, que estamos fora do país, temos que trabalhar por uma verdadeira unidade, que coloque sempre a Nicarágua, sim ou sim, em primeiro, em segundo e em terceiro lugar. Isso por nossos irmãos e irmãs, companheiros e companheiras, que estão lá dentro. Um verdadeiro interesse pela unidade, para devolver a esperança à Nicarágua, sem esquecer que ela deve estar de mãos dadas com o princípio democrático, da representatividade, e assim continuar impulsionando a queda da ditadura. Porque a queda da ditadura está próxima e acredito que só seja possível com esse acordo nacional.

Acredito e considero que o ativismo que vocês conseguiram articular pela reivindicação de nossa liberdade, tanto na Argentina quanto de camaradas de outras realidades, de outros países, tem sido fundamental para dar visibilidade à realidade da Nicarágua. Para exigir a nossa liberdade, que também devemos a esta delegação que foi à Nicarágua e quis entrar no país. Ao Miguel Sorans e demais companheiros e companheiras que promoveram a campanha. Devemos isso também à resistência do povo nicaraguense. Então, seguir a linha do ativismo internacional e a participação de vocês é fundamental. E faço um apelo direto a toda comunidade internacional e às pessoas que têm uma posição ambígua para se definirem diante da alarmante violação dos direitos humanos em nos

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