David Deccache: “o novo arcabouço fiscal (NAF) não é nada mais que a revisão do antigo teto de gastos”

O Arcabouço Fiscal precisa ser melhor debatido pela classe trabalhadora. Para ajudar nessa e avaliação e obter mais informações entrevistamos o economista David Deccache, Diretor do IFFD e assessor econômico na câmara dos deputados/PSOL. boa leitura!

 Combate Socialista: O que é o arcabouço fiscal?

David Deccache: O chamado novo arcabouço fiscal será a base legal para a elaboração do orçamento público do governo federal. Mais que isso: trata-se do direcionamento institucional do tipo de atuação (ou da falta dela) econômica do Estado nos próximos anos.

Antes de falar dos aspectos técnicos, que a grande imprensa já detalhou exaustivamente, cabe uma apresentação histórico-estrutural do processo que levou à concepção do novo teto de gastos.  Para tal, um bom recorte é o início do segundo governo Dilma, pois foi a partir de 2015 a crise estrutural do capital se manifestou de forma ainda mais violenta no Brasil e a burguesia dirigente passou a recorrer a reduções cada vez mais enfáticas das concessões econômicas e radicalizou os instrumentos de espoliação para recompor suas taxas de lucro ameaçadas pelo esgotamento do ciclo anterior.

O período foi iniciado com um programa de austeridade fiscal liderado pelo então Ministro Joaquim Levy. A equipe econômica da época, tal qual a atual, prometeu que os duros cortes de gastos levariam a reduções das taxas de juros e crescimento futuro. Recorreram, portanto, a tese da contração fiscal expansionista – uma concepção teórica rebaixada até no âmbito da ortodoxia econômica. Porém, o que tivemos como consequência da austeridade foi uma explosão brutal do desemprego, precarização dos serviços públicos, queda dos salários e desorganização política da classe trabalhadora.

Abriu-se, com isso, o caminho para o golpe de 2016, imposição do teto de gastos, retrocessos trabalhistas e, com o tecido social esgarçado, o capital recorreu à eleição de Jair Bolsonaro para poder contar com o elemento de coerção mais explícito caso houvesse risco ao consenso ideológico. Com Bolsonaro e Temer, sedimentou-se no Brasil a lógica da destruição das concessões estabelecidas na Constituição de 1988 e a classe dirigente optou pela destruição acelerada dos serviços e investimentos públicos visando um verdadeiro processo de cercamento e espoliação do que é público, incluindo recursos naturais, em prol das privatizações, parcerias público-privadas e mercantilização generalizada das instituições estatais. A austeridade fiscal era peça central neste processo. Destruir por intermédio de legislações fiscais reacionárias a capacidade do Estado em manter os serviços públicos essenciais, como saúde e educação, foi o caminho encontrado pela burguesia para avançar. Neste sentido, aprovaram o teto de gastos, que implicou ataque à previdência social em 2019. A previdência, segundo os intelectuais das classes dirigentes, não cabia no teto do Temer e deveria ser atacada. A opção, eles afirmavam, era a privatização do sistema previdenciário pela ampliação do sistema de capitalização.

Contudo, o teto de gastos era matematicamente insustentável no tempo e não poderia durar para sempre. Inclusive, no momento da sua elaboração, já foi prevista uma revisão em 2026. Essa revisão foi antecipada pela chamada PEC de transição em 2022 para esse ano e culminou no chamado novo arcabouço fiscal, que dada a sua estrutura não passa de uma tentativa de tornar a austeridade fiscal institucionalmente sustentável, já que o teto de gastos era violado anualmente e sistematicamente pelos últimos governos de extrema-direita.

Portanto, o novo arcabouço fiscal (NAF) não é nada mais que a revisão do antigo teto de gastos, conforme declaração recente do próprio Temer ao comentar o novo teto. Neste sentido, o NAF, ao invés de correção dos gastos apenas pela inflação, permite que o governo amplie seus gastos acima da inflação entre 0,6% e 2,5% anualmente. Vale destacar que esse crescimento é totalmente inadequado para os objetivos reformistas e populares propostos durante a eleição pelo Partido dos Trabalhadores. A título de comparação, Bolsonaro, em 2019 – portanto antes da pandemia – mesmo com o teto de gastos em vigor ampliou os gastos públicos em uma taxa superior a máxima permitida no novo teto: 2,72%.

CS: Por que os banqueiros insistem em defender o equilíbrio das contas?

DD: Para impossibilitar o Estado de manter bens e serviços e públicos. Com a destruição do setor público e a inviabilização orçamentária da realização de investimentos em infraestrutura física e social, eles esperam o aprofundamento das parcerias público privadas, privatizações e demais processos de espoliação. É a velha lógica da socialização dos custos e privatização dos lucros. Fora isso, com a austeridade fiscal, o desemprego se mantém em níveis disciplinadores e a classe trabalhadora perde correlação de forças para lutar por direitos e melhores salários. Por fim, com a classe trabalhadora endividada e precarizada, o endividamento das famílias com os bancos explode e uma parcela cada vez maior do rendimento da classe trabalhadora passa a ser extraída pelos banqueiros – que no Brasil se fartam com as taxas de juros reais mais altas do mundo e uma concentração bancária demolidora.

Por fim, o novo teto de gastos é incompatível com os atuais pisos constitucionais da saúde e educação. Esse é um dos objetivos declarados do NAF, aliás. Dada a incompatibilidade, a equipe econômica anunciou oficialmente que pretende enviar uma PEC com a revogação dos atuais pisos, que não cabem dentro do novo teto por muito tempo. Trata-se de uma declaração oficial do atual secretário do Tesouro.

CS: O que significa cumprir a meta de superávit fiscal e a Lei de Responsabilidade Fiscal?

DD: Na verdade, o instrumento de superávit fiscal e a lei de responsabilidade fiscal formatados nos antigos governos Fernando Henrique Cardoso para assentar a lógica das privatizações hoje seriam considerados demasiadamente avançados socialmente pela atual equipe econômica. É esse o ponto que estamos.  Segundo a concepção de alguns defensores do NAF, apenas a lógica da LRF não basta, não é suficiente. Por conta disso, eles endureceram demasiadamente a lógica do tripé macroeconômico somando às metas de resultado primário um teto de gastos conforme inaugurado por Temer. É o aprofundamento reacionário da lógica iniciada nos anos 1990 por FHC. No novo arcabouço fiscal, mesmo que o superávit primário seja cumprido por meio do crescimento econômico e das receitas, não se pode crescer os gastos com serviços públicos e investimentos acima de 2,5%. Em vários momentos até FHC cresceu gastos em taxas bem superiores a proposta pelo atual Ministro Fernando Haddad.

CS: Deixe uma mensagem para nossos leitores

DD: É preciso derrotar o novo arcabouço fiscal. Ele impõe a lógica da austeridade permanente, da manutenção de um nível estruturalmente elevado de desemprego e precarização do mundo do trabalho e da espoliação do que é público em prol dos lucros privados. É o aprofundamento da espoliação do excedente socialmente produzido pela classe trabalhadora pela burguesia rentista, associada ao imperialismo, de raízes escravocratas e com viés autoritário. Usam dos seus intelectuais – muitos infiltrados em organizações da classe trabalhadora – para sedimentar a ideia de que só há uma forma de governabilidade: uma que seja assentada na austeridade fiscal e mercantilização generalizada. Como nos ensinou Gramsci, temos que combate-los em todas as trincheiras , o que inclui o desenvolvimento de uma concepção macroeconômica contra-hegemônica e alinhada aos interesses da classe trabalhadora. O arcabouço fiscal, da forma que foi construído, irá impor uma derrota importante à classe trabalhadora e comprometerá seriamente os objetivos sociais anunciados pelo governo Lula.

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