O Poço: Por que a Netflix quer falsificar o Socialismo?

Rana Agarriberri e Bruno Pacífico

O filme Espanhol “O Poço” estreou na plataforma da Netflix no fim de março e, logo que lançado, gerou uma série de críticas e avaliações sobre qual era seu real significado. O filme que mistura diversos gêneros como distopia, suspense e terror, tem como forma de expressão a alegoria; portanto, trata-se de uma obra aberta às múltiplas interpretações. Muitos se perguntaram se se trata de uma crítica ao capitalismo? Uma mensagem socialista? Ou se fala do egoísmo e da “natureza humana”? Nos últimos anos têm havido um grande interesse do cinema em explorar a desigualdade e a luta de classes, como se expressou recentemente em “Parasita”, filme de Bong Joon-Ho. Segundo o diretor de “O Poço”, Galder Gaztelu-Urrutia, o filme “não é uma crítica social, mas uma autocrítica social, isto é, sobre os limites de nossa empatia”.

AVISO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS!

Premissas e personagens

Aqui faremos um recorte daquilo que o filme apresenta. “O Poço” é uma espécie de prisão vertical com 333 níveis que abrigam diversas pessoas por causas diferentes, sendo o principal cenário. Algumas pessoas escolheram ficar ali, outras perderam a liberdade por terem cometido alguma infração. Em cada nível vivem duas pessoas que compartilham comida, dormem e acordam todo mês sempre num nível aleatório. No nível zero está o primeiro mundo, aqueles que gerem a economia e produzem a comida que adentra ao poço. Os presos são alimentados por uma laje suspensa que desce gradualmente a cada nível. Assim, os de baixo sempre comem as sobras dos de cima, até que não haja mais nada quando chega ao último nível.

O filme tem como protagonista Goreng que escolheu estar neste ambiente. O protagonista conhece Trimigasi que, segundo a Netflix, representa as “pessoas gananciosas (que) fortalecem sistemas corruptos”. Outra personagem que Goreng conhece é a ex-funcionária da administração do “Poço”, Imoughari, que representa o oposto de Trimigasi: isto é, ela representa o altruísmo.

Conhecemos também Miharu, uma personagem que o filme apresenta transitando entre os diversos níveis do poço para encontrar uma criança, seu filho. Esta criança, presente neste ambiente hostil, representa um erro do próprio sistema. Nenhum funcionário sabe que há uma criança no último nível, nem mesmo que existe o último nível, lugar que o filme apresenta como quase impossível de ser habitado. A intenção de apresentar a criança num lugar tão perverso foi a de mostrar que elas são invisíveis em conflitos. Miharu é imigrante e não fala. Desta maneira, seu papel é o de representar que os imigrantes são ignorados.

Após conhecer a estrutura do “Poço”, Goreng decide ir até o último nível, junto a seu novo companheiro de andar, Baharat. Este personagem é a representação de um fiel escudeiro que é acolhido por seu líder e o faz agir de acordo com as suas convicções, mesmo que as pretensões de sua liderança sejam impossíveis de serem realizadas. Ao longo do processo, Goreng e Baharat se tornam violentos, agredindo e até mesmo matando indivíduos dos níveis mais baixos para proteger sua mensagem ao sistema que gere aquele poço.

O socialismo não é a solução”

Antes de entrarem no “Poço”, cada indivíduo pode levar um objeto ao local. Goreng escolhe um livro: Dom Quixote. É importante ressaltar que esta escolha não é aleatória. Dom Quixote é uma das obras mais importantes da literatura mundial. Dom Quixote foi um livro revolucionário, pois apresentou uma nova forma literária: o romance. Foi lido por Marx que o citou em O Capital numa de suas análises econômicas, e foi bastante estudado pelos formalistas russos que apoiaram a revolução de 1917. Sua trama apresenta um nobre que decide se tornar cavaleiro com a grande aspiração de servir à sua comunidade, enfrentando monstros imaginários.

No filme, Goreng é Dom Quixote e Baharat é Sancho Pança. Tanto os personagens literários quanto os do cinema tentam mudar os valores da sociedade à qual pertencem. Claramente, o que a Netflix tem por intenção ao comprar os direitos de distribuição de “O Poço” é apresentar ao público uma avaliação que a empresa faz sobre a estrutura capitalista e, assim, Goreng representa uma visão do que seria o “Socialismo”. Veja o que a própria Netflix declarou:

A falta de um herói ocorre porque os cineastas não querem sugerir que o socialismo ou qualquer outro sistema seja melhor. Quando Goreng e Baharat descem para compartilhar a comida eles espancam os que estão desesperados demais para dialogar. Eles forçam sua ideologia em todos outros andares e, nesse processo, matam muitos dos que pretendiam ajudar. Sua missão socialista se torna outra fonte de opressão. O Poço critica o capitalismo mas não apresenta uma alternativa porque se fosse tão fácil a sociedade já saberia e o filme não teria porque existir.”

Outra declaração da Netflix passa a régua: “Goreng não é a resposta para as injustiças do poço, mesmo que seu desejo de dividir o que tem com os níveis inferiores seja nobre (…). É impossível distribuir igualmente os recursos sem que todos cooperem de bom grado. E o filme mostra que esperar isso é ingênuo (…). Não há resposta no fim, porque não há solução para o estado atual da nossa sociedade”.

A intenção da Netflix então se torna clara: apresentar a sociedade em que vivemos, com todas suas injustiças, seus problemas, mas ao final deixar uma mensagem: a saída não é o Socialismo. Isso nos leva a uma pergunta: Por que a Netflix se deu ao trabalho de comprar os direitos de distribuição de um filme de meio milhão de dólares para passar a mensagem de que o Socialismo não é a solução?

Um espectro ronda o mundo

A crise econômica de 2007-08 não se fechou. Muito longe disso, segundo diversos economistas, após a quarentena de COVID-19, mergulharemos numa crise econômica jamais vista, com uma explosão (que já começou) de desempregados, subempregados, fome, violência, caos ambiental e ainda mais crise política. Sem esquecer que em 2019 já haviam projeções de um novo pico da crise. A pandemia apenas a intensificou.

Nos últimos anos vimos incontáveis exemplos de lutas da classe trabalhadora em todo mundo, contra a aplicação dos ajustes: As revoluções no mundo árabe, as sucessivas Greves Gerais da Grécia, a Intifada Palestina, os levantes no Equador. Na França os coletes amarelos gritavam, em pleno 25 de Dezembro, “Preferimos perder o Natal que nossa aposentadoria”; o Chile se revoltou em manifestações violentas contra a Constituição de Pinochet e o Governo Piñera; na Argentina e Brasil Greves Gerais. Em todo mundo, a burguesia treme de medo de novos processos revolucionários, e por isso apostam em pactos com as burocracias e Partidos reformistas, no Brasil com a CUT/CTB, na Espanha com o Podemos, na França com a CFDT e UNAS, e um longo etc.

Logo, temos visto que esses processos de luta e resistência têm se expressado também nas artes, principalmente, no cinema. O premiado filme “Parasita” é um exemplo de análise sobre as classes e a penúria de nosso povo. Os brasileiros “Que horas ela volta?” e “Bacurau” são também exemplos de filmes que apresentam os problemas da realidade (mesmo “Bacurau” sendo um filme distópico, a violência é algo muito atual). Contudo, devemos ter em vista que a burguesia apresenta uma narrativa, e o cinema é um meio que expressa uma necessidade (da burguesia) de apontar qual o caminho deve ser evitado politicamente numa trama ficcional.

É importante ressaltar que a crise política e a falta de um dirigente internacional é o que explica a ascensão de Bolsonaro, Trump e Duque. A classe procura uma saída, uma alternativa e é impossível dizer que falta disposição de luta aos trabalhadores. Para aliviar pressão, a Netflix se dispôs a distribuir “O Poço”, que mesmo apresentando críticas ao sistema, ainda assim apresenta uma mensagem simples no final: o socialismo não é a solução por que o problema real é a “natureza humana”. Na prática, se utilizam de velhos métodos de calúnia para nos convencer de que a nossa classe não é capaz de pensar e tomar atitudes racionais. Por isso os presos dos níveis mais baixos do poço são apresentados como loucos irracionais, desesperados demais para ajudar na transformação que Goreng se propõe fazer. O que é ainda mais incoerente, em relação a esse interesse da Netflix, é o fato da própria história não apresentar o sistema de gerência do poço como irracional, apenas as atitudes pouco afetivas, irracionais, gananciosas das pessoas que ali vivem.

Esta não é a primeira vez que a empresa de streaming se presta a este papel. Não podemos esquecer do desserviço que foi a distribuição da série “Trotsky” na plataforma, produzida pela estatal financiado pelo governo contrarrevolucionário de Putin; contribuindo assim com as distorções e falsificações históricas dos acontecimentos e da biografia do revolucionário que construiu a revolução russa, ao lado de Lênin.

A “natureza humana” é a causa dos males da sociedade?

A falta de “solidariedade” é o que dizem ser o principal problema dos presos. Os chefs faziam comida para 200 níveis e acreditavam que se não chegava até o último nível era devido a “natureza humana”. Na realidade haviam 133 níveis a mais. O que quer dizer que não havia comida para todos. Mas essa não é a realidade do nosso mundo.

Efetivamente há comida, terras, remédios, transporte e trabalho para toda população mundial. De fato há mais do que o suficiente, porém o capitalismo concentra todos recursos em uma ínfima parcela da sociedade, destinando todo resto do povo a brutal exploração com salários de fome ou ao desemprego. O que Goreng faz é apresentado como sendo uma prática do Socialismo. Porém, o Socialismo não se trata da imposição da minoria. Não queremos tomar todas as decisões. Os trabalhadores devem dirigir o Estado, não uma cúpula seleta de iluminados.

Como socialistas, não queremos forçar ninguém a aderir a nenhuma causa. Isto não é necessário. Os fatos estão aí, límpidos o suficiente para que a classe trabalhadora veja, reflita e tire conclusões. Os trabalhadores organizados são inteligentes e capazes de criar uma realidade infinitamente mais justa do que a que conhecemos. A resposta da Netflix, de que “não há solução para nossa sociedade” não é um equívoco, é uma narrativa criada porque “natureza humana” não existe, o que conhecemos é a manifestação ideológica do próprio sistema capitalista!

Não há como mudar a realidade, sem mudar o sistema

Lutar para modificar o sistema não é quixotismo por que o sistema possui superestruturas que dominam e moldam a sociedade. O sistema é a última expressão do projeto coletivo do ser humano, ele pode (e deve) ser mudado. É importante lembrar que o Poço, assim como o capitalismo, não existe por conta própria. Mesmo que o filme apresentasse a “saída” de eleger Goreng como o novo distribuidor da comida, não seria o suficiente. Administrar os negócios da burguesia, isto é, administrar o capitalismo, não é o nosso objetivo porque esse sistema está completamente falido, e não há nada o que salvar.

A crise de direção continua sendo nosso maior empecilho, e construir as bases da Revolução passa por trilhar o caminho junto de nossa classe. As alternativas reformistas gestadas nos últimos anos naufragaram a uma velocidade ímpar. O partido Podemos, na Espanha, e o Syriza, na Grécia, até mesmo o Chavismo, na Venezuela. A construção de um projeto coletivo e democrático é, com certeza, o maior desafio de todos aqueles que estremecem diante das injustiças.

Nós não temos nada a perder, a não ser nossos grilhões.

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