ARGENTINA | Derrota do governo e eleição histórica da Frente de Esquerda

 

 

por Juan Carlos Giordano, Deputado Nacional pela Esquerda Socialista, partido integrante da Frente de Esquerda e seção argentina da UIT-QI

 

Os resultados de 14 de novembro voltaram a confirmar a derrota do governo, ainda que ele queira disfarçá-la como triunfo. A coligação Juntos pela Mudança (direita) ganhou, mas esperava mais. Produziu-se um crescimento dos neofascistas Milei e Espert. E a esquerda conseguiu uma votação histórica. A Frente de Esquerda e dos Trabalhadores – Unidade (FIT-U, na sigla em espanhol) obteve 1.264.238 votos em todo o país, conquistando a maior bancada da esquerda no Congresso com quatro deputadas e deputados nacionais. Outro fato inédito foi a conquista de vários vereadores nos subúrbios de Buenos Aires, mostrando que a esquerda cresce paralelamente à ruptura operária e popular com o peronismo.

O governo peronista da Frente de Todos foi o grande derrotado. Fez apenas 33% dos votos, chegando à porcentagem mais baixa de todas as eleições legislativas desde 1983. “Passou-se de um peronismo unido, que lhe permitiu ganhar as eleições de 2019, para uma derrota estrondosa em apenas dois anos, mostrando sua crise e uma base operária e popular que, em grande parte, deu-lhe as costas”, dizíamos no balanço das PASO (eleições primárias). Essa ruptura com o peronismo foi ratificada em 14 de novembro. O mal-estar e o descontentamento com o governo se transformaram diretamente em ruptura, vendo uma parte muito importante do eleitorado engrossar os votos da esquerda.

O governo perdeu por nove pontos no país. Foi derrotado nas províncias com maior fluxo eleitoral, começando pela estratégica Província de Buenos Aires (contra Santilli, que até pouco tempo era vice do governo portenho), CABA, Córdoba, Santa Fe, Entre Ríos e Mendoza. Ganhou somente em províncias pequenas. Um bom exemplo foi na Santa Cruz “dos Kirchner”, onde governa Alicia: a Frente de Todos ficou em terceiro. A isso há que agregar que Cristina perdeu a maioria no Senado, uma catástrofe direta contra o kirchnerismo puro.

O governo quer transformar a derrota em vitória por ter encurtado a diferença em Buenos Aires (de 33% para 38%) e ter revertido os resultados em Chaco e Terra do Fogo. Em todo caso, esses dados impediram um maior colapso político, apesar de não evitar seu fracasso.

O governo apelou ao aparato judicial e pressionou os setores que não haviam votado em setembro. O macrismo, do Juntos pela Mudança, ainda que tenha voltado a ganhar, não conseguiu superar sua porcentagem das PASO. O governo poderia manter a primeira minoria na Câmara de Deputados, e ainda que Cristina e a Frente de Todos tenham perdido a maioria no Senado, o macrismo não fez o suficiente para controlá-la. Diante disso, o governo “festeja”, mas o processo de crise do peronismo segue forte.

A nova derrota eleitoral ocorre pela perda de amplos setores operários e populares, que voltaram a dar as costas ao peronismo de Alberto, Cristina, Massa, à CGT/CTA e às lideranças dos movimentos sociais afins. Romperam com um falso discurso “contra a direita” que encobre um ajuste a serviço do FMI.

Enquanto o governo pedia o voto para frear o macrismo, roubou os aposentados e foi responsável pelo crescimento do desemprego, de uma inflação que chegou a 52% interanual e da permanência do roubo salarial e previdenciário. Nisso não há diferenças entre Alberto e Cristina, para além das divergências públicas entre eles. Cristina acaba de dar a ordem para avançar no acordo com o FMI, que representará um maior ajuste. O discurso de Cristina aos jovens de La Cámpora, na véspera do dia 17 de outubro, recordando-lhes os anos de 1945 em que houveram enormes conquistas sociais, que não voltarão, dizendo-lhes que “o peronismo está mais vigente do que nunca”, foi uma tentativa de evitar que uma parte dos votos acabassem indo para a esquerda. Não funcionou. A histórica votação da FIT-U servirá para redobrar a batalha para superar o peronismo, por uma alternativa operária e socialista que combata os males capitalistas, não que conviva com eles.

 

O macrismo e a UCR do Juntos ganharam, mas…

 

O PRO e a UCR do Juntos pela Mudança foram ganhadores, ainda que não seja o resultado que esperavam. Isso se refletiu nas caras preocupadas das figuras no dia da eleição, especialmente no QG da Província de Buenos Aires. Esperavam uma maior diferença e ficaram somente um ponto acima da Frente de Todos (39,81% contra 38,53%). Em todo o país não conseguiram o número de deputados que necessitavam para controlar sozinhos a Câmara. No entanto, conquistaram resultados muito elevados em algumas províncias, como 54% em Córdoba e Entre Ríos. Juntos pela Mudança se postula agora como troca alternativa eleitoral para 2023, diante do colapso peronista.

Parte da ruptura e descontentamento foi capitalizada por essa oposição patronal, ainda que a porcentagem conquistada, de 42%, seja similar às eleições passadas, com o dado de que diminuiu na CABA com Vidal. Foi beneficiada mais por “um voto voltado a castigar o governo do que para beneficiar a oposição”, segundo descreveu muito bem em seu editorial do dia 15/11 o diretor do Clarín, Ricardo Kirschbaum. Ou seja, o macrismo foi utilizado mais para repudiar o governo do que para aderir ao seu programa, que não gera entusiasmo no eleitorado, uma vez que essa coalizão, quando governou, aplicou os pacotes de ajuste e endividou ainda mais o país. Não houve giro à direita, mas um voto-castigo. Sai beneficiado o tandem Larreta-Vidal-Santilli versus Macri-Bullrich. E os radicais com Morales ou Cornejo darão a batalha na interna presidencial. Esse triunfo não pode ocultar sua crise, como se viu no próprio anúncio do resultado com as caras inchadas e sem festejos. Seguem as lutas internas que vêm desde a derrota de 2019.

O voto no Juntos não significa uma saída favorável para o povo trabalhador. Por isso, seguiremos insistindo com os trabalhadores e os jovens que, para enfrentar o peronismo, não se deve ir ao macrismo. Um de seus slogans de campanha foi “é preciso frear” a Frente de Todos no Congresso. Mas sabemos que, em muitos temas cruciais, “não há polêmica”, já que quando se trata de votar leis para garantir os pagamentos da dívida, por exemplo, ou salvar os lucros capitalistas das multinacionais petroleiras, o biodiesel ou o “produtor de ovelhas” Benetton, votam juntos, tanto macristas como peronistas.

 

O voto em Milei e Espert

 

Milei cresceu de 13 para 17% na CABA, conseguindo dois deputados nacionais (310 mil votos), e Espert 596.723 votos e três deputados ao Congresso. Esse é um resultado muito negativo, pois se trata do crescimento de figuras neofascistas no país. Lamentavelmente, canalizam o voto equivocado de setores juvenis e populares que repudiam a corrupção e a miséria provocada pelo sistema capitalista e seus políticos patronais tradicionais.

Denominam-se “economistas não políticos” e apresentam propostas ultradireitistas, antipopulares e retrógradas. A cena do bandido armado que apontou ao público no ato de Milei o mostra por inteiro. Assim como a reivindicação por ataques de vandalismo às sedes dos partidos de esquerda. Espert chegou a dizer que é preciso meter bala, pena de morte para os delinquentes e carta branca para a polícia reprimir. Milei e Espert se dizem “antissistema”, mas defendem o pior do sistema capitalista, negando, inclusive, as mudanças climáticas.

Milei recolhe o voto mais direitista dos falcões macristas, que ficaram com sangue nos olhos pela não aplicação de um ajuste maior ainda quando governaram. Por isso, Milei foi pra cima do macrismo, taxando Larreta de fraco e até de “comunista”. Também os apoia um setor juvenil da direita que odeia “a política”, as conquistas de direitos das mulheres, ou diz que o isolamento na quarentena foi criminoso, muitos deles antivacinas, como Milei. Espert, que até o último momento negociou participar das listas do Juntos, recebeu o voto de setores direitistas ou de listas evangélicas que não passaram nas PASO, e de alguns setores fundamentalistas antikirchneristas. Outros são atraídos pelo discurso contra a “casta política”, mas essa máscara já está caindo. Milei reuniu com Macri dizendo que ele não era parte da casta e que poderiam ir juntos com Bullrich em 2023.

Milei e Espert copiam Trump, Bolsonaro e a ultradireita do Vox, do Estado Espanhol. Teremos que ver se esses personagens crescem por fora de seus distritos. Algumas listas provinciais se referenciaram em Milei, que foi fazer um ato em La Rioja. Não são uma expressão nacional organizada. Seu verdadeiro rosto se apresentará para as massas concretamente com a atuação de seus deputados. Esses são políticos que é preciso combater, chamando a juventude trabalhadora e estudantil a não se deixar enganar por suas frases de efeito.

 

Eleição histórica da Frente de Esquerda – Unidade

 

A FIT-U mais uma vez voltou a ser notícia nacional, gerando um grande impacto e reconhecimento entre os lutadores, não somente da Argentina, mas também de outros países. Nunca a esquerda havia conseguido quatro cadeiras nacionais numa mesma eleição. Tampouco havia conseguido vereadores nos subúrbios de Buenos Aires, mostrando sua inserção nos bairros operários e populares. O mesmo podemos dizer do deputado nacional conquistado a partir de Jujuy. Na CABA, conquistou uma cadeira de deputado nacional que não conseguia desde vinte anos atrás, com Zamora (ainda que agora o fez a partir da unidade da esquerda revolucionária). Se a isso somarmos que obtivemos 1.264.238 votos, sendo a terceira força nacional, já não estamos falando somente de uma grande eleição, mas de registros históricos que nunca se deram. Estamos diante de um giro à esquerda de uma importante franja operária e popular, do movimento de mulheres e da juventude, de vizinhas e vizinhos dos bairros populares, aposentadas e aposentados e da simpatia que a FIT-U goza com o sindicalismo combativo, que participa de suas listas contra a burocracia sindical. É um prêmio para a unidade da esquerda que conquistamos desde 2011, de que nosso partido, Esquerda Socialista (IS, na sigla em espanhol), foi um grande impulsionador e defensor. Esse grande passo se deu, também, pela coerência de ter enfrentado consequentemente todos os governos capitalistas, de qualquer coligação que seja. E porque temos apresentado uma saída de fundo, defendendo o salário, as aposentadorias, enfrentando as demissões, a megamineração, o saque e a contaminação ambiental, e denunciado que o país segue em crise por pagar a dívida externa e cumprir os acordos com o FMI. Somos os verdadeiros antissistema, contra esse capitalismo explorador e destruidor do meio ambiente.

Na Província de Buenos Aires foi onde mais crescemos, com 33% a mais desde as PASO, conseguindo 596.723 votos e com excepcionais performances no subúrbio. Isso possibilitou conquistar duas bancas nacionais pela Província de Buenos Aires, com Nicolás Del Caño (PTS) e Romina Del Plá (PO), que as compartilharão com nossos companheiros e atuais deputados nacionais pela Esquerda Socialista, Mónica Schlotthauer e quem escreve esta nota (Giordano), entre outros. Conquistaram-se, também, dois legisladores pela Terceira Seção eleitoral, com Guillhermo Kane (PO) e Graciela Calderón (diretora de Suteba La Matanza e dirigente da Esquerda Socialista). Se conquistaram, também, dois vereadores em La Matanza, Merlo, Moreno, José C. Paz e em Pringles, um em Morón e em outros distritos a batalha segue no escrutínio definitivo.

Também conseguimos uma cadeira pela CABA, encabeçada por Myriam Bregman (PTS), que compartilhará com Vanina Biasi (PO) e Mercedes de Mendieta (IS), e dois legisladores, com Gabriel Solano (PO) e Alejandrina Barry (PTS), que compartilharão com Pablo Almeida e Mercedes Trimarchi, respectivamente, ambos da Esquerda Socialista. E outra cadeira nacional por Jujuy, encabeçada por Alejandro Vilca (PTS).

 

Resultados e perspectivas

 

A eleição deixou sinais de preocupação. Distintos analistas disseram que tanto a Frente de Todos como o macrismo “não apaixonam”. Que ambas opções patronais têm um “limite” de crescimento, e que tendem ao declive. Fazem referência ao fato de que na Argentina, assim como na América Latina, há um descontentamento “contra o sistema político” e que o peronismo, particularmente, já não se garante como “capitão de tempestades”. Isso reflete o esgotamento da paciência das amplas maiorias populares contra aqueles que vêm governando, que vêm sendo repudiados nas urnas e nas ruas. Essa preocupação se liga ao crescimento da esquerda. O famoso terço, do qual falou Cristina, que perderam o peronismo e o macrismo nesses anos e do qual, segundo afirmaram, uma parte foi ao “extremo” da esquerda.

O governo fica mais débil para aplicar o maior ajuste que se avizinha. Por isso, chama ao consenso e ao diálogo. Lhe restam dois anos de mandato enquanto cresce a miséria e a marginalidade social, como se viu no grito “que se vayan todos” (fora todos) na marcha de repúdio ao assassinato de um dono de quiosque de La Matanza. As lutas certamente crescerão, anunciando um 2022 quente. E ali estaremos, dando a batalha por uma nova direção sindical e política. No sindical, acabamos de ganhar ATEN Capital e outras seções e o sindicato docente de Chuvut (ATECH), ambos contra burocracias peronistas. Ratificou-se a direção do Sutna e se prepara para dar a batalha em Sarmiento, com o “Pollo” Sobrero e a lista Bordô contra a Verde dos assassinos de Mariano Ferreyra (militante do PO). E no político, surgiu uma esperança com a votação histórica da FIT-U. Um grande alento que fortalece a batalha por uma alternativa política, que lute por um governo das e dos trabalhadores e por outro sistema, o socialismo, com democracia operária e popular. Saudamos aqueles e aquelas que tornaram isso possível, toda a nossa militância aguerrida e os centenas de milhares que nos deram o seu voto, convidando-os a se somarem à Esquerda Socialista para enfrentarmos juntos os desafios que virão.

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