TEXTO 3: O governo burguês de Kerensky e a esquerda russa

PARTE I: STÁLIN E KAMENEV APOIAM O GOVERNO PROVISÓRIO

João Santiago, Candidato ao Senado pelo Polo Socialista Revolucionário

 

A Revolução de Fevereiro de 1917 na Rússia,  iniciada com a greve das operárias das fábricas de Vyborg, no dia Internacional da Mulher (23 de fevereiro)*, havia triunfado. Depois de cinco dias (23 a 27 de fevereiro) de combates revolucionários nas ruas de Petrogrado e Moscou, com a sublevação dos regimentos de soldados, a revolução havia colocado abaixo uma dinastia autocrática que governava a Rússia há três séculos, a dinastia dos Romanov.

A queda da Monarquia Tzarista e o governo provisório

Imediatamente após as primeiras horas do triunfo, os sovietes, recém instalados, detinham o poder. Porém, devido à traição dos mencheviques e socialistas revolucionários (maioria nos sovietes), o poder acabou passando para as mãos da burguesia liberal. Trotsky dizia que os socialistas moderados, que estavam à frente dos sovietes, procuravam o tempo todo um “´patrão”, a burguesia liberal, para entregar o poder.(i)

Surgia, assim, com o apoio dos socialistas moderados, o “governo provisório” encabeçado pela burguesia, por meio de Rodzianko, um rico proprietário de terras e membro do Partido Outubrista, e Miliukov, líder do Partido Cadete, da burguesia liberal. Além deles, o governo também era composto por Kerensky, advogado e líder da fração dos Trudoviks (Trabalhistas), um socialista moderado independente que depois aderiu ao Partido Socialista Revolucionário (ii), desempenhando o cargo de ministro da Justiça.

 Stálin e Kamenev apoiam o governo Provisório

Antes da chegada de Lênin a Petrogrado, em 3 de abril, o Partido Bolchevique passou todo o mês de março em desordem política e com tergiversações, aplicando uma política oportunista de apoio ao “governo provisório”. O “manifesto” do Comitê Central dos bolcheviques, lançado logo após a vitória revolucionária das massas, conclamava os operários das fábricas e das usinas, assim como as tropas sublevadas, a elegerem seus representantes ao “governo revolucionário provisório”.

Com a chegada de Kamenev e Stálin em Petrogrado, vindos da deportação na Sibéria, em meados de março, a política oficial do partido deu um giro ainda mais à direita. Imediatamente, os dois foram alçados a membros do Comitê Executivo dos Sovietes, dominado pelos conciliadores (mencheviques e socialistas-revolucionários). Assumiram a direção do Pravda a partir de 15 de março, afastando a antiga redação. No artigo em forma de programa da nova redação do jornal, era proclamado que os bolcheviques apoiariam resolutamente o Governo Provisório “na medida em que esse governo combatesse a reação e a contrarrevolução”(iii).

Mais grave ainda foi a posição dos dois dirigentes no Pravda em relação à guerra interimperialista, que rompia categoricamente com a posição do partido e de Lênin. Eles escreveram que “não fazemos nossa a palavra de ordem inconsistente de “abaixo à guerra!”. Tratava-se de uma traição completa à posição internacionalista do partido e de Lênin, contrária à guerra imperialista e defendendo a transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária, com base no derrotismo da própria Rússia na guerra.

 As Teses de Abril de Lênin: nenhum apoio ao governo provisório!

Ao chegar na Estação Finlândia em 3 de abril, Lênin foi recebido com honras pelo Comitê Bolchevique de Petrogrado e pelo Comitê Executivo do Soviete, na figura do menchevique Cheidze. Após ouvir a fala do dirigente menchevique, que falava em “união” em torno do governo provisório, Lênin se dirigiu aos operários e soldados: “Queridos camaradas, soldados, marinheiros e operários, sinto-me feliz por saudar em vós a Revolução Russa vitoriosa, por saudar-vos como a vanguarda do exército proletário mundial……A Revolução Russa, por vós realizada, iniciou uma nova época. Viva a Revolução socialista mundial!”(iv).

Ao deixar a Estação Finlândia em um desfile de carros militares, foi direto para o Palácio Ksheinskaia, onde se instalara o quartel general dos bolcheviques. Em seu discurso ao partido, mais uma vez defendeu o programa da revolução e a tomada do poder pelos sovietes. Trotsky resumiu assim o discurso de Lênin: “Não precisamos da república parlamentar, não precisamos da democracia burguesa, não precisamos de governo algum, exceto os sovietes de deputados operários, soldados e de operários agrícolas!”(v).

Eram as famosas “Teses de Abril” de Lênin, onde este dizia categoricamente: “Nenhum apoio ao Governo Provisório!”, explicando a completa falsidade de todas as promessas deste governo, sobretudo daquela referente à renúncia às anexações. Desmascaramento, em vez da “exigência” inadmissível e semeadora de ilusões de que este governo, governo de capitalistas, deixe de ser imperialista.”(vi). Além disso, Lênin defendeu a imediata passagem de todo poder aos sovietes de operários e soldados. Assim, começava a luta de Lênin para mudar o curso oportunista no qual se encontrava o partido sob a direção de Stálin e Kamenev.

No próximo número trataremos da segunda fase do governo provisório burguês, com a crise aberta a partir das Jornadas de Abril, e a instalação da primeira Frente popular da história.

NOTAS

 . O calendário russo seguia o calendário juliano e estava atrasado treze dias em relação ao calendário Ocidental, onde o Dia Internacional da Mulher é celebrado em 8 de março.

[i] . Leon Trotsky. A História da Revolução Russa, volume 1, A Queda do Tzarismo, 3ª edição, paz e Terra, 1978, pág. 156.

[ii] .  Leon Trotsky, idem, pág. 203.

[iii] .  Leon Trotsky, idem, pág. 251.

[iv] .  Leon Trotsky, idem, pág. 257.

[v] .  Leon Trotsky, idem, pág. 258.

[vi] .  V.I. Lenine. Obras Escolhidas, volume 2, 2ª edição, Editora Alfa-Omega, 1988, pág.14.

Confira os textos de Lenin e Trotsky

Teses de Abril: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm

História da Revolução Russa:https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/

 

 

PARTE II: Rússia, Abril de 1917: Primeiro Governo de Frente-Popular da História e sua derrubada pelos bolcheviques

Por: João Santiago

 

As Jornadas de Abril de 1917

Três dias após as manifestações pacíficas do 1º de maio (18 de abril no calendário russo) a revolução operária na Rússia deu um novo salto e grandes mobilizações armadas foram protagonizadas pelos soldados cansados da guerra, arrastando consigo os bairros operários.

O pivô da crise foi o ministro do Exterior, Miliukov, líder do Partido Cadete, de extrema-direita. No dia em que os Estados Unidos entraram na guerra fez uma declaração pública que a Rússia faria anexações de Constantinopla, da Armênia, da Pérsia setentrional e desmembraria a Áustria e a Turquia. Após o protesto do Soviet teve que fazer uma nova Declaração em 27 de março voltando atrás em suas propostas de anexação, mas deixando nas entrelinhas o compromisso da Rússia com os aliados na guerra imperialista. Mesmo assim, os Aliados viam a declaração como uma concessão ao Soviet e pressionaram o governo provisório.

Preocupados com o seu desgaste perante as massas, os mencheviques exigiram que o governo enviasse uma nota aos governos da Entente com o mesmo conteúdo da Declaração anterior, e no dia 1º de maio, Miliukov enviou a nota por telégrafo aos governos aliados, e publicada em todos os jornais da Rússia no dia seguinte. A nota dizia que os vencedores “encontrariam um meio de conseguir as garantias e as sanções indispensáveis para impedir, no futuro, novos conflitos sangrentos”. Trotsky havia dito que na linguagem fraudulenta da diplomacia “garantias” e “sanções” não significavam outra coisa senão anexações e indenizações[i].

Enquanto o governo provisório burguês e os conciliadores do Soviet se digladiavam na “superestrutura” política, cerca de 30 mil soldados tomavam as ruas de armas na mão e com cartazes dizendo “Abaixo Miliukov”. A agitação ganhou os bairros operários e o trabalho foi paralisado; os trabalhadores desceram às ruas acompanhando os regimentos. A extrema-direita, liderada por Miliukov e os cadetes também chamou manifestações de rua em apoio a Miliukov e ao governo provisório. Haviam deixado o general Kornilov de sobreaviso para esmagar a mobilização de soldados e operários.

Entretanto, o plano dos cadetes e de Kornilov havia malogrado. Pressionado pela mobilização revolucionária das massas, os mencheviques, imprensados pelo duplo poder, deram ordens expressas para que os regimentos só saíssem das casernas com sua autorização e pediram aos soldados que não se mobilizassem nos próximos dias. Os bolcheviques pressionaram o Soviet a votar uma resolução dando Todo poder ao Soviet, a fim de se encerrar o duplo poder e esmagar o governo provisório burguês, mas foram derrotados na votação. Assim, se encerraram as jornadas de abril.

Surge o primeiro governo de frente-popular: Kerenski torna-se ministro da Guerra

Mesmo com os fortes protestos de rua, o governo provisório não caiu. Isso graças aos conciliadores mencheviques e socialistas revolucionários que sequer exigiram a saída de Miliukov. Entretanto, o governo saiu mortalmente ferido, sem condições de governar como antes. O próprio Miliukov viu-se obrigado a pedir demissão no dia 2 de maio. Os líderes dos partidos da burguesia pediram ajuda aos partidos conciliadores do Soviet para que entrassem no governo através de uma coligação.

Segundo Trotsky, da crise provocada com as jornadas de abril, haveria três saídas: 1ª) a volta de todo o poder à burguesia, e isso só seria possível através de uma guerra civil; Miliukov tentou, mas fracassou; 2ª) a entrega de todo o poder aos Sovietes, sem precisar da guerra civil, bastava levantar os braços no soviet e querer; mas os conciliadores mencheviques “não queriam querer”. Com as duas saídas fechadas, tanto na linha burguesa quanto na proletária, restaria uma terceira saída, “a semi-saída, confusa, híbrida, covarde, das acomodações. Aquilo que se chama coligação”, nas palavras de Trotsky.

Esse debate ganhava as ruas e a superestrutura política. A Duma municipal de Moscou votou uma resolução a favor da Coligação. Em 26 de abril, o governo provisório lançou um manifesto especial chamando “as forças criadoras ativas do país” que ainda não haviam participado dos trabalhos do Estado a virem se associar-se com o governo. Os contingentes militares de Petrogrado pronunciavam-se a favor do governo de coligação; também as províncias votavam esmagadoramente pela coligação; o Exército declarava-se a favor da coligação. Apenas os soviets de Moscou, Tiflis, de Odessa, de Ekaterinburg, de Nizhni-Novgorod, de Tver e alguns outros foram contrários à participação dos socialistas no Governo.

Assim, em 1º de maio, do calendário russo, O Comitê Executivo do Soviet decidiu por maioria de 41 votos contra 18 participar do governo de Coligação. Apenas os bolcheviques e um pequeno grupo de mencheviques internacionalistas votaram contra. Um mês mais tarde, no 1º congresso dos Soviets, a coligação foi aprovada por uma maioria de 543 votos contra 26 e 52 abstenções.

Formava-se, assim, o primeiro governo de frente-popular da história, isto é, um governo onde os partidos da esquerda socialista entram em um governo da burguesia, ocupando ministérios chaves. De 15 ministérios, os socialistas conseguiram 5, tendo Kerenski passado a ser o Ministro da Guerra e da Marinha; Tseretelli, o líder menchevique, ocupou o Ministério dos Correios e Telégrafos, Skobelev, ministro do trabalho, Chernov, ministro da Agricultura.

A entrada dos socialistas conciliadores no governo, longe de resolver a crise revolucionária na Rússia, jogou mais fogo na gasolina. A situação no front de guerra se tornava insustentável e a política do governo provisório e de Kerensky era continuar enviando soldados ao front; os operários e operárias das fábricas faziam greves contra os lock-out dos patrões e o fechamento das fábricas. Faltavam produtos essenciais para a sobrevivência do povo, e o governo continuava pagando a dívida pública da Rússia, que equivalia a quase 60 bilhões de rublos – só a guerra já consumira 40 bilhões de rublos – e na falta de dinheiro para continuar bancando a guerra e o país, o governo provisório apela às potências aliadas por um “Empréstimo da Liberdade”[ii].

O descontentamento com a situação levava os regimentos e as fábricas operárias a se molilizarem, e a manifestação do dia 18 de junho, onde as massas saíram às ruas com as consignas de “Fora os dez ministros capitalistas” e “Todo poder aos soviets”, fora um prenúncio do que aconteceria no início de julho. Foi um recado aos mencheviques e socialistas revolucionários que insistiam no governo de conciliação de classes, enquanto as massas pediam a saída da burguesia do governo. O crescimento dos bolcheviques nos sindicatos e nos soviets de Petrogrado era um reflexo desse descontentamento das massas.

As Jornadas de Julho: Kerensky torna-se ministro-presidente

Nos dias 3 e 4 de julho, novamente os soldados dos regimentos de metralhadores, junto com os marinheiros de Kronstadt e operários e operárias das fábricas de Putilov saíram às ruas de Petrogrado para exigir que os Soviets tomassem o poder e colocassem para fora os dez ministros capitalistas. O endereço visado pelos manifestantes foi o Palácio de Táuride, onde se encontrava o Comitê Executivo dos Soviets, dirigido majoritariamente pelos mencheviques e socialistas-revolucionários. O fato que precipitou a entrada em cena das massas foi a crise política do governo provisório, com a demissão de quatro ministros cadetes, que explodiram a coligação formada em maio, com a desculpa dos compromissos assumidos pelos conciliadores com a Ucrânia. Para Trotsky, na verdade, “a verdadeira causa desta ruptura residia no fato de que os conciliadores não conseguiam refrear as massas”.

As “Jornadas de Julho”, como ficou conhecida a ofensiva das massas, levou para as ruas cerca da 30 mil operários, que marcharam das 11 da noite às quatro da manhã para a frente do Palácio de Taúride, para se juntar aos regimento de metralhadores e soldados armados, assim como aos marinheiros. Cada coluna abria sua faixa com a palavra-de-ordem principal “todo poder aos Soviets”. Os Bolcheviques achavam precipitada a manifestação armada, e esperavam o desfecho no front, quando a derrota russa era previsível, para lançar uma ofensiva total e ganhar o conjunto das massas para derrubar o governo. Mesmo assim decidiram participar da manifestação espontânea para dar uma direção correta para as massas. Os conciliadores condenavam a manifestação chamando-a de contrarrevolucionria, acusando os manifestantes e os bolcheviques´de quererem derrubar o governo á força. E através de Kerensky apelavam para que viessem soldados do front para reprimir os manifestantes.

De fato, o movimento sofrera uma “semi-derrota” com a chegada dos regimentos vindos do front para apoiar o governo, com o desarmamento dos soldados e marinheiros, com a proibição de manifestações de rua, com o fechamento do jornal bolchevique Pravda e a retomada do quartel-general dos Bolcheviques pelas forças do governo provisório, com a prisão de Trotsky e dos dirigentes bolcheviques e a grande calúnia contra Lênin, de que era um agente do Estado alemão em território russo.

Com a pressão das massas e com a saída dos cadetes do governo, os conciliadores se viram obrigados a assumir o primeiro plano do poder no governo provisório. Em acordo com a burguesia e os partidos conciliadores, Kerensky assumiu o cargo máximo do Estado em 24 de julho, o de ministro-Presidente, conciliando com as pastas da Guerra e da Marinha. O Líder menchevique, Tseretelli, foi alçado para o Ministério do Interior.

Para Trotsky, longe desse arranjo representar um reforço do poder, abriu um período de mais crises governamentais, prolongado, “que encontrou formalmente uma solução a 24 de julho, solução que nada mais foi do que o começo da agonia do regime de Fevereiro, agonia que duraria 4 meses”[iii]. Essa agonia passaria ainda por uma tentativa de golpe de Estado encabeçado pelo general Kornilov com o apoio dos cadetes e da burguesia reacionária em agosto, uma Conferência Democrática realizada em meados de setembro e um pré-parlamento, ao qual os bolcheviques boicotaram, por entenderem que agora a luta pela insurreição e a tomada do poder pelos operários era a condição necessária para acabar com a dualidade de poderes e instaurar o socialismo na Rússia. De fato, em 25 de outubro de 1917, os bolcheviques apearam os conciliadores e a burguesia do poder e instauraram o regime dos soviets, encerrando-se assim, a longa agonia do primeiro governo de frente popular da história.

 

Leia também:

Lenin: Estado e a Revolução https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/

 

 

 

 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *