Crônica do terceiro comboio de ajuda aos sindicatos combativos da Ucrânia

Por Imprensa UIT-QI

De Donbass a Zaporíjia, a luta contra a invasão russa desde baixo

Depois de quase 48 horas de viagem de avião, trem e ônibus, chegamos a Dobropilia, uma cidade mineira na bacia ucraniana do Donbass, a 80 quilômetros de Bakhmut, onde ocorrem combates brutais para deter o ataque do exército russo. Dimitri, Natalia e Alexander, do Sindicato Independente de Mineiros da Ucrânia, estão esperando por nós. Comunicamo-nos com o olhar e com gestos, porque os tradutores chegaram atrasados. Os camaradas dos Coletivos de Solidariedade, um grupo de jovens anarquistas que apóiam a resistência com ajuda material, tiveram um problema com seu carro. Entre abraços, sorrisos e tradutores automáticos vamos tomar um café enquanto esperamos por eles. É a primeira parada da viagem. Objetivo: dar-lhes 1.500 euros para comprarem alimentos essenciais, que serão distribuídos através das Iniciativas Operárias, uma organização de ajuda aos trabalhadores. Depois iremos a Zaporíjia, a cidade industrial às margens do Dniepre, para levar ajuda ao Sindicato Independente dos Trabalhadores Ferroviários. É o terceiro comboio de solidariedade com a Ucrânia, e em particular com a juventude e a classe trabalhadora, organizado por Luta Internacionalista e Unidade Internacional de Trabalhadoras e Trabalhadores – Quarta Internacional, um ano após o início da invasão lançada por Vladimir Putin.

Com os mineiros de carvão no Donbass

Ao contrário de outras cidades no Donbass sob controle ucraniano, em Dobropilia ainda há bastante vida nas ruas. Antes da invasão, tinha 65 mil habitantes. Hoje, são menos de 25 mil, além de alguns milhares de refugiados das cidades da região onde há combates ou que caíram sob a ocupação russa. Alexander é um deles: mostra fotos de sua casa destruída em Mariupol e explica que seus pais ainda estão lá. O Donbass é a bacia das minas de carvão no leste da Ucrânia, onde em 2014 ocorreu um levante instrumentalizado pelo Kremlin, que acabou ocupando grande parte das províncias de Donetsk e Lugansk. E é onde agora se travam os combates mais intensos: na frente oriental.

Em Dobropilia, os bares e lojas estão abertos. E as crianças brincam de jogar bolas de neve nos parques. “Aqui tem mais vida porque ainda temos uma mina funcionando e as pessoas ainda têm empregos”, diz Natasha, uma mulher robusta e séria que também trabalhou na mina por 16 anos. Ela foi a primeira mulher a reivindicar seu direito de trabalhar na parte subterrânea das minas, antes proibida para mulheres junto com outros trabalhos perigosos.

Levam-nos para passear pela cidade, cinzenta e poluída: o vento sopra do leste e leva para as casas a poeira das minas e da refinaria de carvão. Está organizada em duas ruas principais, que cresceram em torno das minas nos últimos 60 anos. Mostram-nos a central térmica, que exala fumo preto, e a mina pública, que ainda está em funcionamento. “Costumava ser chamada de mina do Exército Vermelho e agora, brincando, chamamos de mina Cristalina, porque na verdade é muito suja”, diz Dimitri com um sorriso. Todas as minas de Dobropilia pertenciam à DTK, empresa do oligarca Rinad Ahmetov [a principal fortuna da Ucrânia segundo a lista da Forbes, que agora apóia o governo Zelensky diante da invasão]. Há dois anos a empresa abandonou cinco minas, que passaram a ser públicas, ficando apenas com as mais rentáveis. Apenas uma mina pública continua funcionando, e em condições muito precárias: os mineiros reclamam que estão em condições piores do que na época da empresa privada. A situação no Donbass ocupado pela Rússia, eles nos dizem, é ainda pior, com a maioria das minas abandonadas, inundadas e irrecuperáveis.

Desde o início da invasão russa, 15 mísseis caíram sobre a cidade. Há apenas duas semanas os últimos. E em Dobropilia não há alvo militar. Também não há abrigos onde se esconder: apenas os porões de alguns prédios, que têm a portaria marcada com uma placa.

Como no segundo comboio, em novembro, os sindicatos combativos ucranianos nos pediram novamente para levar comida. E não é que a Ucrânia não tenha o suficiente ou que ela seja muito cara: os preços são semelhantes aos de Barcelona. Mas os salários são muito mais baixos e agora ainda mais, devido aos cortes que o governo impôs amparado na lei marcial. Além disso, muitas empresas fecharam ou fizeram demissões.

Vamos juntos a um grande supermercado e fazemos as compras: 1.500 euros em produtos básicos, que as Iniciativas Operárias vão distribuir em cestas para 63 famílias da cidade que perderam alguém na luta contra a invasão russa. Despedimo-nos entre agradecimentos e abraços.

Com os ferroviários

De ônibus e trem passamos pelo Dnipro e chegamos a Zaporíjia, que desde a libertação de Kherson no verão passado está um pouco mais longe da linha de frente, mas ainda sob bombardeios: dois dias depois de partirmos, o Kremlin lançou, com uma nova chuva de mísseis, 20 ataques na região.

A cidade, que recebeu centenas de milhares de refugiados do Donbass este ano, continua sob alta-tensão. Devido aos ataques sistemáticos da Rússia às infraestruturas elétricas, as casas só têm luz no esquema quatro horas acesas e quatro apagadas. São duas da tarde e o termômetro cai para -5 graus. As escolas só dão aulas online: praticamente não funcionam normalmente desde o início da pandemia, em 2020. Às nove da noite começa o toque de recolher.

Por ser uma cidade da segunda linha de combate, os seus habitantes recebem uma ajuda do governo de 800 hryvnia (cerca de 18 euros) por mês. Mas o desemprego cresce, os salários caem e a inflação começa a disparar. “Agora temos medo de ir ao supermercado, porque o salário não é suficiente”, explica Sergei Aleksandrovich, chefe do Sindicato Independente dos Ferroviários da Ucrânia. E o governo de Volodímir Zelenski decretou que os salários deixem de ser indexados à inflação. Sergei, que é motorista da Ukrzaliznytsia, a empresa ferroviária pública, mal ganha cerca de 300 euros por mês, um dos salários mais altos da empresa. “Dez anos atrás eu ganhava o triplo…. na época, os jovens queriam ser maquinistas, mas agora não”, lamenta. Os salários dos motoristas estão intimamente ligados à distância percorrida, e as viagens agora são geralmente mais curtas. Natasha Savelieva, que trabalha nas garagens, mal ganha 200 euros por mês.

O último escândalo de corrupção com a compra de alimentos para os soldados a preços inflacionados, que derrubou o número dois do Ministério da Defesa ucraniano, voltou a pôr em evidência um problema que os camaradas deste sindicato ferroviário denunciam há muitos anos. “Não sabemos o que o governo faz com toda a ajuda que recebe da UE. Não sabemos para onde vai esse dinheiro… Não é como com vocês, que garantem que sua ajuda chegue aos trabalhadores”, conta o sindicalista. Também vamos com eles a um grande supermercado de Zaporíjia para comprar comida com os 1.500 euros que lhes trazemos: azeite, farinha, açúcar, sal, bolachas, conservas de peixe, leite condensado, latas de sardinha…

Os trens são estratégicos na defesa contra a invasão russa: transportam todo tipo de carga para todos os cantos do país e são fundamentais para a evacuação de feridos e refugiados. Alguns ferroviários foram mortos ou gravemente feridos em bombardeios russos. Sergei denuncia que quando há problemas, os maquinistas ficam sozinhos: “ninguém te diz o que fazer se houver alarme, se tem que parar ou seguir em frente. Segundo a lei, o que acontecer é de responsabilidade do maquinista”. Ele diz temer que um dia os trens sejam alvos expressos dos mísseis russos: “pode ​​acontecer, mas não podemos fazer nada”.

“Continuamos a funcionar em plena guerra, sobretudo graças ao esforço dos trabalhadores e das trabalhadoras, não por causa da empresa, que só faz coisas para aparecer na foto: compram locomotivas muito bonitas, mas que não funcionam bem. Cortam salários e demitem trabalhadores”, reclama Natasha, também sindicalista. Ela mesma é a encarregada de abastecer as locomotivas a carvão, que tiveram que usar quando o fornecimento de energia caiu. No momento em que conversamos, ela recebe um SMS informando que seu salário foi pago: é inferior a 120 euros.

Os ferroviários também estão enfrentando uma nova onda de demissões. Sem dar nenhuma justificativa, a empresa pública demitiu 41 trabalhadores de Zaporíjia, que ficarão desempregados em maio. Só se conseguiu impedir uma demissão, porque era um trabalhador filiado ao sindicato. Sergei diz que eles estão prontos para lutar, mas que a lei não permite que eles intervenham se não forem sindicalizados. “De resto não podemos fazer nada. É o sindicato majoritário que deve reclamar. Mas estamos dispostos a lutar até ao fim. Eles me propuseram entrar no conselho regional do sindicato, mas não quero acabar corrompido como a maioria dos líderes das grandes organizações. Vocês também têm grandes sindicatos corruptos, que cuidam mais deles do que dos trabalhadores?”

No dia seguinte, no pequeno escritório do sindicato, na garagem da estação Zaporíjia 2, os 79 sindicalizados vêm buscar a cesta básica. A distribuição é feita com total transparência, com uma lista em que cada um assina ao receber o auxílio. Igor, um maquinista de 42 anos que vem buscar a cesta, conta em surgik (uma mistura de russo e ucraniano) que teve que deixar sua casa, na cidade de Kamianske, cerca de 30 quilômetros ao sul de Zaporíjia, porque ela está sob constantes ataques russos, dentro do alcance da artilharia do Kremlin. “Alguns parentes nos deixaram um apartamento em Zaporíjia e viemos morar aqui duas semanas após o início da invasão. Antes, 3.000 pessoas moravam na minha cidade e agora são apenas 160, que não querem sair. Temos um grupo de voluntários e toda semana mandamos uma van com comida, mas é muito perigoso. Também levamos ração para todos os cachorros que foram abandonados lá”, explica. Igor e sua esposa, que trabalhava em um orfanato e agora está sem trabalhar e sem receber ajuda alguma  (oficialmente de férias sem remuneração), sabem por quem ficou na cidade que só restam as paredes de sua casa. Mas o que eles mais temem é pelos vizinhos: eles perderam contato com a parte sul da cidade e temem que possam ter sido deportados para Vasylivka, que está sob ocupação russa. “Se foram levados, terão passado pelo que os russos chamam de ‘‘filtragem’’, que são campos de tortura e de deportação”, alerta o maquinista. “Esta guerra não faz sentido: tudo isso por conta de um regime que decidiu colocar todos os territórios da ex-URSS sob o jugo de Moscou e recuperar um império perdido. Esperamos que o povo ucraniano resista.”

 


24 de fevereiro: Um ano da invasão russa da Ucrânia

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