Em Tempos De Arcabouço Fiscal E Suas Sutilezas

Por: Dirlene Marques – Professora de economia da UFMG, aposentada.

Foi votada a nova regra fiscal chamada de “Arcabouço Fiscal”, que vem para substituir a EC 95 ou a chamada PEC dos Gastos. De um lado, os setores próximos do Governo Lula, os partidos da direita e setores que se abstiveram de exercer a crítica, saíram falando da vitória democrática; de outro, a expectativa para quem votou no Lula, acreditando em alguma mudança e que esperava no mínimo, o rompimento com a primazia do mercado prevista na EC 95, foi frustrada.  

A base da EC 95, aprovada no governo Temer, visava promover e consolidar uma draconiana redução da presença do Estado na economia, reduzindo o gasto primário do Governo Federal, limitado por um teto que seria o montante gasto no ano anterior, reajustado pela inflação acumulada, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Isto por 20 anos, levando a uma brutal redução dos gastos sociais, pois a correção pelo IPCA é insuficiente para contemplar o crescimento da população e o crescimento da economia. Ao mesmo tempo, se formaria um superavit primário, garantindo recursos para pagar os juros da dívida pública, repassando recursos públicos para o sistema financeiro.  A clareza destes propósitos da EC 95, trouxe indignação e uma mobilização nacional. Façamos um parêntesis para uma recuperação histórica.

Esta lógica – cortar o social para fazer face às dívidas – não é algo novo. É um processo que vem dos anos 90 com o período neoliberal. Uma lógica referenciada na ideia de que o público é ruim, ineficiente; já o privado é bom e competente. É o período das privatizações do riquíssimo patrimônio brasileiro, entregando de bandeja para o grande capital nacional e internacional as grandes empresas estatais tais como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Vale do Rio Doce (CVRD), a Empresa de Telecomunicações (EMBRATEL).

Novos conceitos são elaborados para ocultar o desmonte do estado social. Veja a sutileza: aplicar no social passa a ser considerado gasto e não investimento; o orçamento passa a ter uma nova forma de medição para garantir o “superavit primário”, isto é, uma parte substantiva do orçamento (em torno de 45%) é retirado para o pagamento dos serviços da dívida. “É como se houvesse um orçamento para o “andar de baixo” (primário), cada vez mais restrito legalmente e um orçamento para o “andar de cima” (nominal), sobre o qual não há restrição e através do qual se distribui renda para o 1% mais rico da sociedade, na forma dos juros incidentes sobre o estoque da dívida”. (OUTRAS PALAVRAS, abril, 2023) .

Para viabilizar estas mudanças, legislações são aprovadas garantindo que receitas arrecadadas pelo Estado sejam transferidas para o sistema financeiro. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), elaborada nos anos 90 e sancionada em 2000, ganha força em 2016,no Governo Temer com a EC 95 – a PEC do Teto dos gastos.  Portanto, dos anos 90 aos dias atuais, da LRF a EC 95, as leis vao garantindo a transferência dos recursos públicos para o sistema financeiro.  

Um Estado cada vez mais mínimo e menos social. Uma mudança tão radical necessita de apoio político e social, apoio este adquirido através de intensa campanha midiática e baseada em condições reais, que é a precarização dos serviços públicos. A percepção de que não se pode gastar mais do que se arrecada é naturalizada. Para explicar e dar forca a este raciocínio, usam um exemplo próximo ao cotidiano das pessoas: “tal como em sua casa se você gasta mais do que ganha, você entra em crise”.  Raciocínio simples mas falso. A economia publica nada tem a ver com a domestica. O Estado tem o poder de mudar, aumentar, reduzir a forma de arrecadar seus recursos como: cobrando mais de quem tem mais, taxando Sistema Financeiro, as grandes fortunas, investindo nos setores que geram emprego. 

Assim, o princípio da redução do tamanho do estado, na lógica de que não podemos gastar do que o bolso comporta ou temos de buscar metas de superavit fiscal, conquistando uma politica equilibrada etc. passa a ser incorporada pela população, pelo povo, pela esquerda sem perceber que isto significa: garantir a transferência de recursos para o sistema financeiro diminuindo o estado para as politicas sociais.  

O Arcabouço Fiscal segue este mesmo princípio. Mantém o princípio do teto de gastos para o social, tal como na EC 95 garantindo o superavit primário para sustentar os juros e para alicerçar a credibilidade financeira. Vai introduzir uma leve flexibilidade. Condiciona ao limite de 50% a 70% do crescimento real da arrecadação. Já o crescimento real das despesas primárias terá uma variação de 0,6% a até no máximo 2,5% ao ano, isso a depender do crescimento da receita tributária. Outras receitas, como venda de estatais e lucros do Banco Central, ficam fora e já vao diretamente para o pagamento dos juros e serviços da dívida. São limitações severas. Só para ter uma ideia de como estes limites são irrisórios, no 1º. Governo Lula, o investimento ficou em 7,5%, no segundo, 9,6%. 

É importante salientar, que uma proposta tão rebaixada de um governo que foi eleito pelos setores populares, mostra fragilidade. Um congresso com maioria conservadora e reacionária, percebe isto e piora mais ainda a proposta. Incluem o FUNDEB e o Teto da Enfermagem no teto que estavam fora.  E caso as metas não sejam cumpridas, serão adotadas medidas automáticas de controle de despesas obrigatórias tais como: a não concessão de aumento real de despesas obrigatórias, a suspensão de criação de novos cargos públicos e a suspensão da concessão de benefícios acima da inflação. Com todas essas punições, amarram mais ainda o Estado, exigindo um acompanhamento do cumprimento das metas a cada dois meses. E como forma de garantir este controle, a promessa de que os Gestores não podem ser punidos pelo não cumprimento das metas estabelecidas pelo Novo Arcabouço, caso tenham respeitado medidas de contingenciamento e acionado as medidas automáticas de controle.

Temos claro que termos como ajuste fiscal ou responsabilidade fiscal tem significado um assalto ao Estado e uma redução drástica dos serviços básicos, elementares para o povo. Ao mesmo tempo, significa enriquecer mais ainda o sistema financeiro que fica com 45% a 50% dos recursos orçamentários. Nestas condições, como investir no desenvolvimento brasileiro? Denise Gentil levanta a possibilidade de que o governo coloque no horizonte os investimentos privados para compensar o baixo investimento público. Uma aposta muito grande considerando que o setor privado brasileiro historicamente tem funcionado, sempre impulsionado pelo setor público. Daí, podemos entender a lógica do novo pacote de estímulo aos carros populares; ou ainda, entender que o Governo tem jogado todas as suas energias para o mercado internacional. Claro, oferecendo o que temos de mais precioso: nossas riquezas naturais que sairão sobre a forma de comodities. Podemos aí entender, também, por que o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e o Ministério dos Povos Indígenas, estão na berlinda.

 

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 Antonio Martins “Onde Haddad errou”. OUTRAS PALAVRAS. Publicado 06/04/2023; Atualizado 12/04/2023. Disponível em: < https://outraspalavras.net/crise-brasileira/onde-haddad-errou/> Acesso em 30 mai. 2023.

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